Que antes de partir sentemo-nos
ao lado do cão dormindo na soleira da porta e deixemo-nos tomar pela ausência
de seu olhar e pela imobilidade de suas patas sobre o tapete de retalhos, e sintamos,
junto com ele, o mais profundo dos silêncios.
Que antes de partir façamos um
café bem forte, com pouco açúcar, e bebendo-o, admiremos pela última vez a
orquídea fantasmagórica que aos poucos definha sobre a mesa da sala de jantar,
ao lado de Goethe, Poe e Clarice.
Que antes de partir coloquemos em
caixas de papelão todos os cadernos de memórias, cartas e fotos antigas, e
também os vários livros de contos e crônicas que escrevemos na juventude, quando
acreditávamos que a palavra pudesse nos salvar do abismo do esquecimento.
Que antes de partir ouçamos pela
última vez os concertos de Brandenburgo, de Bach, e tomemos a última taça de
vinho, sentindo a música e a bebida nos elevar o espírito às alturas do
insondável.
Que antes de partir possamos
viver cada instante de cada momento sem esperar nada da vida, e que o instante
seja tudo para nós, no Tempo-Morte que lentamente nos devora.
Que a dor dos que nos amam não
nos doa, e não dure; e que de tudo que fomos e fizemos nesta vida reste apenas
um cheiro doce de rosas amarelas colhidas com o nascer do sol, ou uma brisa de
outono a soprar lembranças sobre um túmulo esquecido, ou um luar prateado numa fria
noite de inverno.
Eu e todos os meus eus agora
reunidos neste aconchego de instantes sem esperança – nesta sala a que chamamos
Liberdade – damo-nos as mãos e aguardamos serenos, pensando:
Que antes de partir saibamos viver
o que há de mais precioso no mundo: o que somos.
E que a um sono de paz finalmente
nos entreguemos, sem medo, sem dor...
Flávio Marcus da Silva
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