domingo, 6 de março de 2016

Vernor Matheius

“O HOMEM DORMINDO. Não com o rosto de alguém em repouso, mas atormentado, angustiado. Sua testa vincada, sua boca torcida numa careta. Os globos oculares movendo-se por baixo das pálpebras fechadas. Um estremecimento de sua lustrosa pele escura como uma ondulação na superfície da água. ‘Se eu pudesse achar que ele é feio, sem atrativos. Se eu pudesse vê-lo como não-o-amando’. Eu era uma criança aproximando da chama as pontas dos dedos, pedindo a dor, desafiando a dor, não acreditando na dor. Tentando imaginar a minha vida sem Vernor Matheius no seu centro. Minha vida sem amá-lo.

Um buraco no coração através do qual o frio árido do universo poderia passar, assobiando.

Estranho para mim, que observava Vernor Matheius enquanto ele dormia, nas raras ocasiões em que tinha o privilégio de vê-lo dormir, que houvesse outros, caucasianos, uma categoria de indivíduos à qual teoricamente eu pertencia, que podia observar Vernor Matheius na sua insondável complexidade e pensar simplesmente ‘negro’. E rejeitá-lo, porque ‘negro’. Que loucura!

Cheguei a acreditar que a vida sem questionamentos, a vida que é conduzida sem uma contínua inquirição, e sem dúvidas quanto a todas as discriminações herdadas, os preconceitos, era loucura. Em nossas vidas civilizadas estamos rodeados pela loucura, enquanto nos acreditamos iluminados.”

Joyce Carol Oates (1938-). Levo você até lá (2002). São Paulo: Globo, 2004, p. 206-7

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