sexta-feira, 25 de julho de 2014

Fui ao rio...



"Fui ao rio e o sentia
próximo de mim, diante de mim.
Os ramos tinham vozes
que não chegavam a mim.
A corrente dizia
coisas que eu não entendia.
Quase me angustiava.
Queria compreendê-lo,
sentir o que nele o céu pálido e vago dizia
com suas primeiras sílabas alargadas,
mas não conseguia.

Retornava.
– Era eu o que retornava? –
na angústia vaga
de sentir-me só entre as coisas, últimas e secretas.
De repente senti o rio em mim,
corria em mim
com suas margens trêmulas de sinais,
com seus fundos reflexos apenas estrelados.
Corria em mim o rio com suas ramagens.
Eu era um rio ao anoitecer
e suspiravam em mim as árvores
e se apagavam em mim as veredas e o capim.
Me atravessava um rio, me atravessava um rio!"

Juan L. Ortiz (1896-1978), poeta argentino. Fui ao rio... In: modo de usar & co. (blog)

Canção da bebida



"Agora é a hora de deixar de beber.
Parar de uma vez, é preciso.
Foi com certeza o bastante.
Consola-me então, ó Espírito,
nesta noite de 20 para 21 de julho de 1965,
em desespero profundo, e cercado de Trevas."

Gerard Reve (1923-2006), poeta holandês. Canção da bebida. In: Canções espirituais (1966)

Ela


"Ela devora seus filhos
ela bebe o sangue de seus mortos
ela prega aos surdos
ela desconhece valores superiores

Ela perde o caminho
ela cambaleia de traição em traição
de erro em erro
ela dorme nas derrotas

Que ela é desnecessária
toda criança aprende na escola
que o povo não a deseja
finalmente percebeu o povo

Que ela não pode vencer
foi provado por a + b
Os que o provaram
não dormem muito bem

Os que nela creem
cansam-se às vezes com as dúvidas
alguns que a odeiam
sabem que ela está a caminho"

Erich Fried (1921-1988), poeta austríaco. Ela. In: modo de usar & co (blog)

céu azul



"Mãos brancas
cabelos ruivos
olhos azuis

Pedras brancas
sangue ruivo
lábios azuis

Ossos brancos
areia ruiva
céu azul"

Erich Fried (1921-1988), poeta austríaco. Naturalização. In: modo de usar & co (blog)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Confidência



"Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso
Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido...
Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso
Contar do meu tormento obscuro e impressentido.

Em tuas mãos de morte, ó minha Noite escura!
Aperta as minhas mãos geladas. E em repouso
Eu te direi no ouvido a minha desventura
E tudo o que em mim há de grave e carinhoso."

Manuel Bandeira (1886-1968). Confidência (1913). In: Os melhores poemas de Manuel Bandeira. 5ª ed. São Paulo: Global, 1988, p. 55

Eu li nos olhos do meu filho



"Ontem vi em meu filho um olhar estranho
Que durou uma notícia trágica um comercial
Eu li nos olhos do meu filho
Que já viram coisas demais a pergunta
Se o mundo ainda vale o esforço que é a vida
Pelo instante que durou uma notícia trágica
Um comercial eu fiquei em dúvida
Se desejava a ele uma vida longa
Ou por amor uma morte prematura."

Heiner Müller (1929-1995), poeta alemão. Tristão 1993. In: modo de usar & co (blog)

De minha cela



"De minha cela perante a folha em branco
Na cabeça um drama para plateia nenhuma
Surdos os vencedores os vencidos mudos
Sobre a cidade estranha um olhar estranho
Cinza-amarelas passam as nuvens sobre mim
Branco-cinza cagam as pombas sobre Berlim"

Heiner Müller (1929-1995), poeta alemão. Olhar estranho: despedida de Berlim. In: modo de usar & co (blog)

en ninguna parte



"No volvían de un lugar determinado, según sus ojos; volvían de haber estado en ninguna parte, en una soledad absoluta y engañosamente poblada por símbolos: la ambición, la seguridad, el tiempo, el poder."

Juan Carlos Onetti (1909-1994), escritor uruguaio. El astillero (1961). Barcelona: Seix Barral, 2009, p. 115

São Paulo S/A



“Parece que construímos para isso, Luciana. O nosso trabalho é recompensado. Caminhamos para a tranquilidade. Agora você pode descansar nos fins de semana como sugeria a publicidade dos jornais. Não temos ainda o apartamento à beira mar, mas podemos fazer nosso filho respirar o ar puro do campo. 

Arturo é o grande exemplo que você toma. Tudo que você deseja na vida é que eu seja como ele, não é mesmo? Arturo é bom, Arturo é rico, massacra seus operários, rouba quanto pode, tem grandes e desonestas ambições. Mas Arturo é um exemplo. Veja como trata seus filhos. Só quer o bem para eles. Fazer sua família feliz é tudo que Arturo deseja.” 

Do filme “São Paulo S/A” (1965), de Luís Sérgio Person (1936-1976). [Uma surpresa para mim, esse filme. Descobri por acaso. Muito bom!]

sábado, 19 de julho de 2014

El astillero


"(...) se tanteó distraído para buscar cigarillos y encendió uno. Podía enumerar lo que no le importaba: fumar, comer, abrigarse, el respeto ajeno, el futuro. (...)

Ésta es la desgracia  – pensó  –, no la mala suerte que llega, insiste, infiel y se va, sino la desgracia, vieja, fría, verdosa. No es que venga y se quede, es una cosa distinta, nada tiene que ver con los sucesos, aunque los use para mostrarse; la desgracia está, a veces. Y esta vez está, no sé desde cuándo; anduve dando vueltas para no enterarme, la ayudé a engordar con el sueño de la Gerencia General, de los treinta millones (...). Y ahora, cualquier cosa que haga serviría para que se me pegue con más fuerza. Lo único que queda para hacer es precisamente eso: cualquier cosa, hacer una cosa detrás de otra, sin interés, sin sentido, como si otro (o mejor otros, un amo para cada acto) le pagara a uno para hacerlas y uno se limitara a cumplir en la mejor forma posible, despreocupado del resultado final de lo que hace. Una cosa y otra y otra cosa, ajenas, sin que importe que salgan bien o mal, sin que importe qué quieren decir. Siempre fue así; cuando la desgracia se entera de que es inútil, empieza a secarse, se desprende y cae."

(...) Larsen sintió el espanto de la lucidez. Fuera de la farsa que había aceptado literalmente como un empleo, na había más que el invierno, la vejez, el no tener dónde ir, la misma posibilidad de la muerte.

(...) No volvían de un lugar determinado, según sus ojos; volvían de haber estado en ninguna parte, en una soledad absoluta y engañosamente poblada por símbolos: la ambición, la seguridad, el tiempo, el poder.

Juan Carlos Onetti (1909-1994). El astillero (1961). Barcelona: Seix Barral, 2009, p. 85; 86; 99; 115

Liberté


"J'ai certainement vite appris quelque chose qui n'avait pas fait partie des enseignements de ma petite vie étouffante; j'ai appris à m'amuser, et même à être amusante, et à ne pas penser au lendemain. D'une certaine manière, c'était la première fois que je connaissais la liberté en plein air, la musique de l'été et le mystère de la nature."

Henry James (1843-1916). Le tour d'écrou (1898). [Tradução do inglês]. Paris: Librio, 1998, p. 35

domingo, 6 de julho de 2014

Modéstia


"O que nos aproxima realmente do divino não é a negação de nossa humanidade, mas o mergulho consciente nela - foi o que afirmou Michel de Montaigne, o mais modesto dos pensadores, em seus 'Ensaios', do século 16. Para Montaigne, é colocando os pés no chão que nos impulsionamos em direção aos céus: nos tornamos grandiosos quando aceitamos o que há de pequeno e ridículo em nós mesmos, saboreando nossa insignificância, acariciando o Nada que somos e que temos, inevitavelmente, de ser.

Ao nos afastar da ilusão, a humildade nos aproxima do Universo. 'É uma perfeição absoluta, e como que divina, saber desfrutar honestamente de seu próprio ser', escreveu Montaigne. 'Procuramos outros atributos por não sabermos utilizar corretamente os nossos, e saímos de nós mesmos por não sabermos o que em nós se passa. No entanto, pouco adianta subir em pernas de pau, pois mesmo em pernas de pau ainda teremos de caminhar com nossos próprios pés. E mesmo no trono mais elevado do mundo ainda estamos sentados sobre o nosso traseiro'."

José Francisco Botelho. Modéstia. Revista Vida Simples, julho 2014, n. 147, p.22

Não aguentamos mais



"Das coisas às quais você era mais apegado você resolve um belo dia falar cada vez menos, se esforçando, quando não tem escapatória. Não aguentamos mais nos escutarmos sempre falando... Resumimos... Desistimos... Faz trinta anos que conversamos... Não fazemos mais questão de ter razão. Até a vontade de guardar o lugarzinho que você reservou entre os prazeres o abandona... Nos enfastiamos... Doravante basta comer um pouco, criar um pouco de calor em torno de si e dormir o mais possível no caminho para lugar nenhum. Precisaríamos, para recobrar interesse, descobrir novas caretas a fazer diante dos outros... Mas já não temos força para mudar o repertório. Empacamos. Ainda procuramos uns assuntos e uns pretextos para permanecer ali com eles, os companheiros, mas a morte também está ali, fedorenta, ao nosso lado, o tempo todo agora e menos misteriosa do que uma partida de bisca."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 482

A nora Henrouille


"Que tipa! Havíamos simpatizado, ao nosso jeito... Nos entendido bem, no passado, eu e a nora Henrouille... Por muito tempo... Mas agora, ela já não estava baixo o suficiente para mim, não podia descer... Me encontrar... Não tinha a instrução nem a força. A gente não sobe na vida, desce. Ela não podia mais. Não podia mais descer até ali onde eu estava... Havia noite demais para ela ao redor de mim."


Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 487

sábado, 5 de julho de 2014

Uma mudança de hábito


"Shirley chegou à cidade com uma perna quebrada
e conheceu o chicano que fumava
longos charutos slim
e eles foram morar juntos
na Beacon Street
5º andar;
a perna não atrapalhava
muito e
eles assistiam televisão juntos
e Shirley cozinhava, de
muletas e tudo;
havia um gato, Bogey,
e eles tinham alguns amigos
e falavam sobre esportes e Richard Nixon
e de como era difícil tocar
as coisas.
funcionou por alguns meses,
Shirley se livrou até do gesso,
e o chicano, Manuel,
conseguiu um emprego no Biltmore,
Shirley costurava todos os botões caídos
das camisas de Manuel, remendava e emparelhava as meias
dele, então
um dia Manuel retornou para casa, e
ela havia sumido -
sem discussão, sem bilhete, apenas
sumira, levando todas as roupas
e pertences, e
Manuel sentou-se juto à janela e olhou para a rua
e não foi ao trabalho
na manhã seguinte nem
na outra e nem
na outra, sequer ligou para avisar,
perdeu o emprego,
recebeu uma multa por estacionamento proibido, fumou
quatrocentos e sessenta cigarros, foi
preso por embriaguez, saiu por
fiança, foi
a julgamento e se confessou
culpado.

quando o aluguel venceu ele
se mudou da Beacon Street,
deixou o gato e foi viver com
seu irmão e
os dois enchiam a cara
todas as noites
e falavam sobre o quão
terrível
era a vida.

Manuel jamais voltou a fumar
aqueles longos charutos slim
porque Shirley sempre dizia
como
ele ficava bonito
com eles na boca."

Charles Bukowski (1920-1994). Uma mudança de hábito. In: O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 238

Suas mãos no meu rosto...


"Suas mãos no meu rosto,
toda a pele de suas mãos em toda a pele do meu rosto, como ar.
Seus carros enferrujados,
seus sonhos aos gritos,
seus uniformes,
seu lixo em chamas,
seus doces de amêndoa,
seu pó.
Seu dó.
Seus joelhos pálidos
e seus pés com calos.
Suas facas,
suas veias,
suas barricadas.
Sua menta,
seu chá,
sua maconha com as janelas todas fechadas,
seus olhos cerrados,
seus cães envenenados,
suas romãs e suas joias
amassadas até o sumo.
O tremor da sua chegada
como outra espécie de perda subordinada,
outra espécie
de uma indivisível,
implacável e
momentânea graça."

Robin Myers (1987-), poeta norte-americana. In: Modo de usar & Co. (Blog)

a mesma coisa


 

"Com meu diploma eu podia me estabelecer em outro lugar, lá isso era verdade... Mas não seria outra parte nem mais agradável nem pior... Um pouco melhor o lugar no início, fatalmente, porque as pessoas sempre precisam de algum tempo para chegarem a conhecer você e porem mãos à obra e descobrirem a maneira de prejudicá-lo. Enquanto ainda estão procurando o detalhe que o faz sofrer de maneira mais fácil, você tem um pouco de sossego, mas assim que descobrem o segredo, aí tudo volta a ser a mesma coisa, em qualquer lugar. (...)

Quanto aos pacientes, aos clientes, eu não tinha a menor ilusão... Não seriam num outro bairro nem menos ávidos, nem menos broncos, nem menos covardes do que os daqui. O mesmo vinho, o mesmo cinema, as mesmas futricas esportivas, a mesma submissão entusiasta às necessidades naturais, da boca e do cu, refariam deles lá como cá a mesma horda pesada, abrutalhada, titubeando de uma potoca à outra, linguaruda, sempre, tramoieira, maldosa, agressiva entre um pânico e outro."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 367

Amor em estoque



"Quando passávamos juntos pelas ruas movimentadas, as pessoas se viravam para trás e ficavam com pena dele, do cego. Elas têm muita pena, as pessoas, dos inválidos e dos cegos e pode-se dizer que têm amor em estoque. Diversas vezes senti o que era o amor em estoque. Há enormemente. Não se pode dizer que não. Só que é triste que elas continuem a ser tão ruins com tanto amor em estoque, as pessoas. A coisa não sai, é isso. Agarra-se lá dentro, permanece dentro, não lhes serve para nada. Elas morrem por dentro, de amor."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 416

quarta-feira, 2 de julho de 2014

no fim da noite



"– Está bem –, me acompanhe até em casa e lá vou lhe dar um pouco de dinheiro, e depois você vai para onde quiser.

Queria se livrar de mim na noite, o quanto antes. Era sempre assim. De tanto ser empurrado desse jeito na noite, a gente deve acabar chegando em algum lugar, eu pensava cá comigo. Era um consolo. 'Coragem, Ferdinand', eu repetia, para me aguentar, 'de tanto ser posto no olho da rua em todo lugar você certamente há de acabar descobrindo o troço que lhes dá tanto medo, a todos eles, a todos esses filhos da puta, sejam quantos forem, e que deve estar no fim da noite. É por isso que eles não vão até lá, até o fim da noite!'."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 236

Quase todos os desejos do pobre são punidos com a prisão



"Vesti-me e, mal ou bem, cheguei ao elevador, mas um pouco cambaleante. Ainda tive de passar no vestíbulo diante de outras fileiras, de outros encantadores enigmas de pernas tão tentadoras, de rostos delicados e severos. Umas deusas, resumindo, deusas aliciadoras. Poderíamos tentar nos entender. Mas eu tinha medo de ser preso. Complicações. Quase todos os desejos do pobre são punidos com a prisão. E a rua me pegou novamente. Não era mais a mesma multidão de ainda agora. Esta manifestava um pouco mais de audácia se bem que andando como carneiros pelas calçadas, como se tivesse chegado, essa multidão, num país menos árido, este da distração, o país da noite."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 217

Leitura



"Agora que lês os contos de Isaac Babel, 
pensei em convidar-te a vir comigo
visitar em pensamento os que, como ele, morreram
em insuportável sofrimento corpóreo,
e cuja voz, entretanto, através do tempo, dos 
campos e das águas,
das montanhas e das estepes,
nos faz companhia e nos ajuda a viver,
com histórias e poemas,
na travessia das noites de insônia."

Odylo Costa Filho (1914-1979). Poesia completa. Rio de Janeiro: Aeroplano: Fundação Biblioteca Nacional, 2010, p. 161

Monsieur Monod não sabe cantar



"meu querido
me lembro de ti como a melhor canção
essa apoteose de galos e estrelas que já não és
que já não sou que já não seremos
e contudo sabemos muito bem ambos
que falo pela boca pintada do silêncio
com agonia de mosca
no final do verão
e por todas as portas mal fechadas
conjurando ou chamando esse vento aleivoso da memória
esse disco arranhado antes de usar
tingido segundo o humor do tempo
e suas velhas doenças
ou de vermelho
ou de preto
como um rei em desgraça na frente do espelho
na véspera
e amanhã e depois de amanhã e sempre" (...)

Blanca Varela (1926-2009), poeta peruana. Monsieur Monod não sabe cantar. In: Modo de usar & Co. (Blog)

não não não


"Dizer não
dizer não
atar-me ao mastro
mas
desejando que o vento o vire
que a sereia suba e com os dentes
corte as cordas e me arraste ao fundo
dizendo não não não
mas a seguindo"

Idea Vilariño (1920-2009), poeta uruguaia. In: Modo de usar & Co. (Blog)

Testamento



"Se por acaso morrer durante o sono
não quero que te preocupes inutilmente.
Será apenas uma noite sucedendo-se
a outra noite interminavelmente.

Se a doença me tolher na cama
e a morte aí me for buscar,
beija Amor, com a força de quem ama,
estes olhos cansados, no último instante.

Se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
quero que me venhas ver
e tocar o frio e sangue do corpo.

Se, pelo contrário, morrer na guerra
e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
quero que saibas, Amor, quero que saibas,
pelo cérebro rebentado, pela seca veia,

pela pólvora e pelas balas entranhadas
na dura carne gelada,
que morri sim, que me não repito,
mas que ecoo inteiro na força do meu grito."

Rui Knopfli (1932-1997), poeta moçambicano. Testamento. In: Modo de usar & Co. (Blog)

Charles Bukowski



"O primeiro impacto da obra de Bukowski num leigo é forte: o estilo do escritor é rude, direto, sem floreio algum. Numa linguagem seca, desiludida, coloquial e repleta de termos de baixo calão, Bukowski reproduz com perfeição a noite de Los Angeles e seus arquétipos, que ele conhece como ninguém. Boa parte da crítica tem Charles Bukowski como um escritor menor, talvez pela simplicidade aparente de sua escrita. A temática do autor é marginal, das ruas, da noite e, em seus trabalhos, o que mais se pode ver são mendigos, prostitutas, álcool, doenças, miséria, corridas de cavalos e outros pontos pouco ortodoxos.

No entanto, é justamente sua capacidade de transformar o trivial – e até mesmo o escatológico – em análise humana e, principalmente, em literatura que chama a atenção. Bukowski podia ser um alcoólatra sem residência fixa, mas sua cultura é inegável: influenciado por nomes como John Fante, Walt Whitman, Ezra Pound, Fiódor Dostoiévski, Ernest Hemingway e Louis-Ferdinand Céline, o escritor era, à sua maneira, um erudito, que só escrevia ao som de uma estação de rádio especializada em música clássica. Ele escreveu todo tipo de conto, indo do realismo até o fantástico. (...)

Autor de mais de cinquenta livros, entre poesia e prosa, Bukowski fascinou o público jovem com seu senso de humor sarcástico e suas narrativas sobre a dificuldade da vida.

Morreu na Califórnia, aos setenta e três anos, de leucemia."

Revista Literatura

juventude



"Era como se tivesse chegado o momento, à idade talvez, em que se sabe muito bem o que se perde a cada hora que passa. Mas ainda não se adquiriu a força e a sabedoria necessárias para se parar de vez na estrada do tempo e além do mais em primeiro lugar se parássemos não saberíamos tampouco o que fazer sem essa loucura de avançar que nos domina e que admiramos desde a nossa juventude. Já temos menos orgulho dela, de nossa juventude, ainda não ousamos confessar em público que talvez só seja isso a nossa juventude, entusiasmo em envelhecer.

Descobrimos em todo o nosso passado ridículo tanto ridículo, embuste, credulidade que desejaríamos talvez parar na mesma hora de sermos jovens, esperar que ela a juventude se distancie, ultrapasse você, vê-la ir embora, se afastar, olhar toda a sua vaidade, pôr a mão no seu vazio, vê-la repassar mais uma vez diante de nós, e depois nós mesmos partirmos, termos certeza de que ela de fato se foi, a nossa juventude, e tranquilamente então, de nosso lado, bem nosso, passarmos devagarinho para o outro lado do Tempo a fim de olharmos de fato como é que elas são, as pessoas e as coisas."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 307-8

Molly



"Boa, admirável Molly, quero se ela ainda puder me ler, de um lugar que não conheço, que bem saiba que não mudei para ela, que ainda a amo e para sempre, a meu modo, que pode vir aqui quando quiser partilhar meu pão e meu furtivo destino. Se não for mais bonita, pois bem, paciência! Vamos nos arranjar! Guardei tanta beleza dela dentro de mim, tão viva, tão quente que ainda tenho o suficiente para nós dois e para no mínimo mais vinte anos, o tempo de tudo se acabar."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 254

explosão


"O coração quando estamos um pouco bêbados de cansaço fica nos martelando nas têmporas. Bim! Bim! bate ele na espécie de veludo esticado em volta da cabeça e no fundo dos ouvidos. É assim que um dia a gente chega a explodir. Amém! Um dia, quando o movimento de dentro encontra o de fora e que todas as suas ideias então se dispersam e vão finalmente se divertir com as estrelas."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 332

bichos de dar lucro



"A única festa verdadeira é para o comércio e ainda assim nos subterrâneos e em segredo. É de noite que ele, o comércio, exulta, quando todos os inconscientes, os fregueses, esses bichos de dar lucro foram embora, quando o silêncio voltou à esplanada e que o último cachorro soltou finalmente sua última gota de urina encostado no bilhar japonês. Aí as contas podem começar. É a hora em que o comércio contabiliza suas forças e suas vítimas, com tostões."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 333

Foto: Céline, em 1905

O poder da literatura



"A literatura não é um divertimento; tampouco é um saber especializado. Ela é um instrumento, precário e sutil, de interrogar a vida. Desloca nossas certezas, transformando-as em incertezas. Em vez de nos oferecer respostas, nos faz novas perguntas – desagradáveis e perturbadoras. Leia 'Crime e castigo', 'O castelo', o 'Livro do desassossego', ou 'A paixão segundo GH'. Se você ler para valer, se neles mergulhar como quem se lança em um abismo, e a literatura é um abismo, sairá da leitura transformado e atordoado, sairá um outro homem, ainda que no corpo do mesmo homem. 

A literatura é, antes de tudo, uma máquina de transformação. Se você não deseja se modificar; se não pretende correr riscos; se teme as perguntas que não comportam respostas – então, eu aconselho, afaste-se da literatura. A literatura é, sim, perigosa, porque tem o poder de nos desestabilizar e desassossegar. Se você aprecia sua vida banal e rotineira, fuja! Ao contrário, se você sente um grande incômodo com o mundo, se você se incomoda com o tédio das imagens e da repetição, se você deseja se modificar e modificar o pequeno mundo que o cerca, então leia. (...)

Não é preciso ser um especialista para ler uma ficção. Não é preciso ostentar títulos, apresentar currículos, ou credenciais. A literatura é para todos. Dizendo melhor: é para os corajosos ou, pelo menos, para aqueles que ainda valorizam a coragem. Se você deseja sair de si e experimentar novas possibilidades do existir, então leia. Se deseja correr riscos e perder-se um pouco no instável e no precário, leia. Se você acha a vida insuficiente e deseja o inesperado, leia. Este é o pequeno, mas também precioso, poder da literatura."

José Castello. O poder da literatura. Coluna: "A literatura na poltrona". O Globo - Cultura 

Imagem: "Novel reader" (1888), de Vincent Van Gogh (1853-1890)

Avançando sem medo pela noite



Avançando sem medo pela noite, atordoado, ferido, indignado às vezes, mas firme. Não vou sucumbir. Sairei de "Viagem ao fim da noite" mais forte, mais vivo, mais eu, tenho certeza. Experiência incrível de leitura!

"Realmente, não adoramos nada mais divino do que o nosso cheiro. Toda a nossa desgraça decorre de que temos de continuar sendo Jean, Pierre ou Gaston, custe o que custar, durante anos a fio. Este nosso corpo, disfarçado em moléculas agitadas e banais, o tempo inteiro se revolta contra essa farsa atroz de durar. Elas, nossas moléculas, querem ir se perder o quanto antes no universo, essas gracinhas! Sofrem por serem apenas 'nós', traídos pelo infinito. Explodiríamos se tivéssemos coragem, apenas beiramos a explosão, um dia atrás do outro. Nossa tortura querida ali está trancada, atômica, debaixo da nossa própria pele, com nosso orgulho."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 358

Os ricos não precisam matar uns aos outros para comer



"Os ricos não precisam matar uns aos outros para comer. Botam os outros para trabalhar, como dizem. Não cometem o mal eles mesmos os ricos. Pagam. A gente faz tudo para agradá-los e todos ficam muito felizes. Enquanto suas mulheres são bonitas, as dos pobres são feias. É consequência dos séculos, toaletes à parte. Lindas teteias, bem nutridas, bem lavadas. Desde que dura, a vida só chegou a isso.

Quanto ao resto, por mais que se faça escorregamos, derrapamos, recaímos no álcool que conserva os vivos e os mortos, não chegamos a nada. Está mais do que provado. (...) Deveríamos entretanto ter compreendido o que acontecia. Vagas incessantes de seres inúteis vêm do fundo das eras morrer permanentemente diante de nós, e no entanto ficamos ali, a esperar coisas... Nem mesmo para pensar a morte a gente presta."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 353