domingo, 6 de outubro de 2013

Um grito na noite


Ouço um grito no meio da noite. Continuo na cama, sem conseguir dormir. Já estou acostumado com gritos por aqui. Esse parece que foi no andar de baixo, no apartamento da prostituta. Coitada...

Moro no décimo andar de um prédio com mais de mil apartamentos, uma verdadeira cidade. No momento estamos sem prefeito. Há três meses o síndico se jogou do nono andar e se arrebentou todo lá embaixo. No velório, nem abriram o caixão. Até hoje ninguém quis substituí-lo. Tinha trinta e cinco anos, o rapaz. Morava sozinho, sofria de insônia e depressão. Ficava na sacada do seu apartamento fumando a madrugada inteira, no escuro. Dava para vê-lo daqui – ou melhor, a sua sombra – e o arder do fogo na ponta do seu cigarro quando ele tragava – e tragava forte, como se quisesse puxar de volta a vida que lhe escapava pelos poros. Em madrugadas de lua cheia dava para ver o seu rosto. Às vezes ele acariciava a barba com uma das mãos. Às vezes tirava os óculos e chorava.

Uma vez, de madrugada, vendo-o prostrado na sacada, eu quis ligar para ele. Era só abrir a gaveta da escrivaninha, pegar a agenda e procurar seu nome, na letra B. Até hoje está lá: Bruno síndico. Pois é... Eu quis ligar, mas não liguei. Fiquei ali, escondido atrás da cortina, observando-o no seu silêncio, na sua dor – que era como uma aura ao redor do seu corpo, uma energia quase palpável, mais escura que o escuro do seu apartamento apagado, mais fria que o frio da noite. Dava para sentir. Mas eu não liguei. Afinal, ligar para quê? Eu não tinha nada a ver com ele, não o conhecia, a gente mal se cumprimentava. Ao invés de ligar, fiz um café. Eram três da madrugada. Voltei à janela e olhei-o de novo, discretamente. Ele fumava um cigarro atrás do outro, e bebia o que, pelo formato da garrafa, me pareceu ser conhaque, ou uma espécie de licor. 

Uma semana depois ele se matou. Coitado...

E agora um grito. Um grito de mulher no andar de baixo, no apartamento da prostituta. Tenho certeza que é ela. Deve estar apanhando de um cliente, a vagabunda. Se estiver, bem feito para ela.

Droga, não consigo dormir. Daqui a pouco tenho que ir à missa. Não posso faltar de jeito nenhum.

Flávio Marcus da Silva

Imagem: Kahlil Gibran in Rainbows (detalhe), de James R. Eads

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