quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Nebulosidade Variável



"– Tanta faina, tanto andar de lá para cá, tanto querer abarcar. Para quê, se não há amor? Pode me explicar, a senhora que tem tanto estudo?

Baixei a cabeça

– Não, Brígida – reconheci. – Não posso explicar." (p. 98)
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"Eu precisava imaginá-lo de outra forma para poder suportá-lo e sonhar que o dominava. (...) Não desfrutava dele tal como era, mas das estratégias que eu mesma armava para pôr à prova seu amor, explorá-lo em meu terreno e canalizar sua turbulência. Através desse Guillermo que inventei e que não existia – dobrado e deslumbrado a meus pés, domesticado por uma inteligência serena e superior – eu amava mais do que nunca a mim mesma. Foi meu primeiro fracasso, embora eu tenha levado muito tempo para entendê-lo, o primeiro elo de uma cadeia de bravatas sem outro objetivo senão ocultar minha covardia frente ao erotismo desordenado." (p. 104)
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"...Pedro Larroque já devia saber muito sobre os estragos do tempo, por isso seus olhos se embaçavam quando recitava, fitando a janela. 'Que a ninguém engane o ardil,/ cuidando que há de durar o que espera/ mais que durou o que viu.' Tinhauma voz que fazia estremecer alguma coisa dentro de mim. Às vezes, pensativo, acariciava o escasso cabelo entremeado de branco. E nos perguntávamos se ele era bonito ou feio, velho ou jovem. Até que um dia soubemos, porque ele mesmo o disse em aula, que tinha a mesma idade de Pedro Manrique ao ser atingido por uma flecha quando assaltou o forte de Garci-Muñoz: trinta e nove anos. 'Nossa, tão velho e solteiro', comentei com você, condoída. Agora, se é que ele ainda vive, deve estar beirando os oitenta. Provavelmente nem se lembraria de nós, se nos encontrássemos em algum lugar. E no entanto ele continua falando através de sua boca, Mariana, como Jorge Manrique falava conosco através da dele. Veja você, nós sempre às voltas com a mesma coisa: o tempo." (p. 138-9)
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"Fiquei um tempo mais com os cotovelos apoiados na mesa e o queixo entre as mãos, saboreando as lágrimas que escorriam por meu rosto, como quando a gente acaba de assistir a um filme de amor, sentindo como faz bem chorar assim, sem dor nem desconsolo. Reconheço a sensação, o que indica que não deve ser a primeira vez que choro de um jeito assim tão doce, capaz de esconjurar malefícios e desfazer nós cegos, mas o tempo que me separa dessa outra vez, seja lá qual for, é algo que não sei calcular. Porque eu, Mariana – e quero logo dizer isso, para que você veja que, pelo menos nesse terreno, a vida não pôde comigo –, nunca soube calcular o tempo, nem estou interessada em saber. Só quero que ele me acolha e eu possa entrar sem medo em seu recinto sagrado, em vez de ficar espiando do lado de fora, defendendo-me dele, medindo seus passos. Nisso consiste a bem-aventurança, em dizer, como dizia Guillermo, 'agora é sempre', acreditar nisso e ser capaz de transmiti-lo aos outros. E ao mesmo tempo em que evoco essa frase e os olhos de Guillermo fitando as estrelas enquanto a pronunciava, na noite em que o conheci, ao mesmo tempo a palavra 'sempre' aqui ao meu lado, escrita com seu punho e letra, Mariana, emite sinais de luz como um farol no nevoeiro, levemente borrada por minhas duas lágrimas mais recentes, o que indica que você também continua escrevendo com caneta-tinteiro, mais uma de nossas coincidências." (p. 141-2)
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"...que tudo no fundo é uma questão de palavras, de combiná-las, de brincar com elas, é o terreno da literatura, que dizem que está acabando por causa do audiovisual, mas isso não cola, é um disparate, as pessoas continuam loucas por inventar escritos que convençam de alguma coisa ou emocionem, mesmo que seja tudo mentira, o que importa é que você acredite, depende de como as palavras são ditas e de como você as escuta. O próprio amor, não é acima de tudo uma questão de palavras? Pelo menos o dos romances, que é o que faz chorar; alguma coisa há de ter a água quando é benta (...). Há muitíssimos anos, recebi um conselho de um professor de literatura do colégio: que nunca deixasse de apanhar palavras com minha rede de caçar borboletas, disse isso depois de ver uma colagem que eu tinha feito, chamada 'O filólogo'. Don Pedro Larroque, esse era o nome dele, e graças a seu conselho continuo em pé, porque a literatura já me salvou de muitos poços escuros." (p. 153-4)

Carmen Martín Gaite (1925-2000). Nebulosidade Variável (1992). São Paulo: Companhia das Letras, 1997

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