quinta-feira, 19 de novembro de 2015

insignificâncias

"Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre
as insignificâncias (do mundo e as nossas)
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios."

Manoel de Barros (1916-2014)

he would wait



“The gas fire? But it was too late now. Holmes was coming. Razors he might have got [...]. There remained only the window, the large Bloomsbury lodging-house window; the tiresome, the troublesome, and rather melodramatic business of opening the window and throwing himself out. […] But he would wait till the very last moment. He did not want to die. Life was good. The sun hot.”

Virginia Woolf (1882-1941). Mrs. Dalloway (1925). London: Penguin Books, 1996, p. 164

No jardim de infância

"Foi no jardim de infância que conheci as primeiras crianças da minha idade. Elas pareciam muito estranhas, sorriam e conversavam e pareciam felizes. Não gostei delas. Sempre me sentia enjoado e o ar tinha um aspecto estranhamente calmo e puro."

Charles Bukowski (1920-1994). Misto quente (1982)

A desistência é uma revelação



"A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.

A desistência é uma revelação. [...]

Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono."

Clarice Lispector (1920-1977). A paixão segundo G.H. (1964). Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 211-12

A hora de viver

"– Entende, morrer eu sabia de antemão e morrer ainda não me exigia. Mas o que eu nunca havia experimentado era o choque com o momento chamado 'já'. Hoje me exige hoje mesmo. Nunca antes soubera que a hora de viver também não tem palavra. A hora de viver, meu amor, estava sendo tão já que eu encostava a boca na matéria da vida. A hora de viver é um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par. Dois portões se abriam e nunca tinham parado de se abrir. Mas abriam-se continuamente para – para o nada?"

Clarice Lispector (1920-1977). A paixão segundo G.H. (1964). Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 90-1

Em Miami

"Nos poucos meses que passei em Miami, não consegui encontrar um só instante de tranquilidade. Vivi cercado de fofocas constantes e confusões, e de uma infinita sucessão de coquetéis, festas e convites. Era como viver num mostruário, uma estranha criatura que precisava ser convidada antes de perder o brilho, antes de chegar um novo personagem que me desbancasse. Não tinha paz para trabalhar e muito menos para escrever. Quanto à cidade – aliás, não é uma cidade e sim um amontoado de casas espalhadas, um povoado de cowboys, onde o cavalo fora substituído pelo automóvel –, ela me assustava. Estava acostumado com uma cidade com ruas e calçadas, uma cidade deteriorada, mas onde era possível andar e entender seu mistério, até mesmo desfrutar esse encanto. Agora, encontrava-me num mundo plástico, carente de mistério, e cuja solidão acabava sendo mais agressiva. Por isso mesmo, comecei logo a sentir saudades de Cuba, da cidade velha de Havana...".

Reinaldo Arenas (1943-1990). Antes que anoiteça (1990). Rio de janeiro: BestBolso, 2009, p. 347

Angústia, depressão e fobia



"Se não conseguimos enfrentar a heterorregulação autoritária e se também não conseguimos nos submeter totalmente a ela, vamos, portanto, passar a viver num estágio intermediário, instável e perigoso de vida, conhecido pelo nome de neurose. Esse estágio é caracterizado por sintomas típicos como a ansiedade, a angústia, a depressão e a fobia. Querer e não poder ser eu mesmo, querer e não poder viver o meu tipo de amor específico, querer e não poder criar com liberdade em função de pulsações interiores apenas, querer sentir-se com todo o desejo e direito a lutar pela própria auto-regulação e ao mesmo tempo se sentir impotente para isso causam na pessoa 'forte ansiedade', isto é, a sensação de urgência, de pressa e de medo ao mesmo tempo, como se estivéssemos ameaçados de morte caso não conseguíssemos realizar os anseios vitais.

Se já ultrapassamos para pior essa fase, se o que estamos vivendo agora prova a dificuldade aparentemente insuperável de realizar nossos anseios vitais, algo surge em nós que supera a ansiedade e passamos a viver dominados por outro sintoma, ainda mais doloroso, como se estivéssemos amarrados, constrangidos, imobilizados, asfixiados. Estamos descrevendo a 'angústia', que, em geral, descrevemos como um aperto quase físico entre o peito e a garganta. A palavra angústia vem do latim 'angor', que quer dizer aperto, estreitamento.

Dessas sensações de urgência vital para realizar os anseios de auto-regulação espontânea e original e de aprisionamento, imobilização, asfixia, podemos passar a algo quase insuportável, uma vez que já possuímos características de derrota completa e sentimo-nos em ameaça de morte iminente. Trata-se da 'depressão', caso em que nossas forças parecem estar indo embora e levando a esperança e a possibilidade de qualquer reação.

O medo da morte se identifica com o medo das coisas, forças ou pessoas que nos heterorregulam. Assim, começamos a viver o sintoma chamado 'fobia'. Diante do medo total e aparentemente inespecífico e sem causa evidente, nos isolamos, nos escondemos, nos imobilizamos, para, finalmente, em um gesto no qual utilizamos o saldo de energia que nos sobrou dessa luta inglória, dar os últimos passos que nos restam: aceitar passiva e obedientemente a heterorregulação e embarcar, com a grande massa de 'cordeiros' dos sistemas políticos autoritários, no genocídio ecológico das sociedades heterorreguladoras e antinaturais; ou enlouquecemos, quer dizer, deixamo-nos dividir em pelo menos dois, nos esquizofrenizamos de modo a nos tornar irresponsáveis, irrazoáveis e insociáveis; ou, finalmente, nos deixamos suicidar como consequência de nossa incapacidade, tanto de viver de modo autônomo quanto submetidos à heterorregulação."

Roberto Freire (1927-2008). Penso, logo hesito. In: Roberto Freire. O tesão pela vida: SOMA, uma terapia anarquista. São Paulo: Francis, 2006, p. 47-8

A cor da pele


"em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África.

carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.

mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis."

Adão Ventura (1946-2004). A cor da pele (1980). 5ª ed. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1988, p. 01

Faça o amor, não faça a guerra

"Partindo do slogan hippie, aparentemente tão ingênuo, o 'faça o amor, não faça a guerra', pode identificar-se sua filosofia: o corpo não está a serviço das Forças Armadas, da competição e da produção industrial, mas é local de encontro e trocas, espaço do prazer que a palavra pode enriquecer, mas não substituir. Desse corpo hierarquizado, do qual os símbolos mais evidentes são as vestimentas e os uniformes, passa-se a um corpo fraternal, local de troca ou de nudez, que se torna o símbolo de encontros, discussões, mais que de exploração e de consumo sexual. 

Essa revolução não violenta fez do corpo o seu campo de 'batalha' pela recusa do corpo produtivo, do corpo obediente, do corpo eficiente a serviço da competição e da violência. [...]"

Roberto Freire (1927-2008). Eu sou meu corpo. In: Roberto Freire. O tesão pela vida: SOMA, uma terapia anarquista. São Paulo: Francis, 2006, p. 55

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Desgosto

"...um desgosto VERDADEIRO, indiscutível, às vezes é capaz de tornar sério e firme mesmo um homem de uma fenomenal leveza, nem que seja por pouco tempo: bem melhor, sob o efeito de um desgosto verdadeiro e sincero, mesmo imbecis tornaram-se às vezes inteligentes, também, é certo, por um tempo."
Fédor Dostoïevski (1821-1881). Les Démons (1873). Paris: Librairie Générale Française (Le Livre de Poche), 2011, p. 259

"...un chagrin VRAI, indiscutable, est parfois capable de rendre sérieux et ferme même un homme d'une phénoménale légèreté, ne fût-ce que pour peu de temps: bien mieux, sous l'effet d'un chagrin vrai et sincère, même des imbéciles sont parfois devenus intelligents, aussi, bien entendu, pour un temps."

Três horas


"F. Scott Fitzgerald escreveu em 'A derrocada' que 'às três da madrugada, um fardo esquecido tem a mesma importância trágica de uma sentença de morte, e a cura não funciona – numa noite realmente escura da alma são sempre três horas da manhã, dia após dia'. Esse demônio das três horas me visitou."
Andrew Solomon (1963-). O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p.139
Foto: F. Scott Fitzgerald (1896-1940), escritor norte-americano

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Depressão



 "[...] sua depressão estava em seu momento mais grave. Decidiu submeter-se ao tratamento depois de descobrir o endereço de uma loja de armas para se matar. 'Não queria morrer porque me odiava, mas porque me amava o suficiente para querer o fim da dor. Eu me apoiava na porta do banheiro de minha filha a cada dia para ouvi-la cantar – ela tinha onze anos e sempre cantava no chuveiro –, e aquilo era um convite para que eu não sucumbisse por mais um dia. Eu não conseguia me importar, mas de repente percebi que, se comprasse uma arma e a usasse, aquela menina pararia de cantar. Eu a silenciaria. Naquele dia mesmo me internei [...]".

Andrew Solomon (1963-). O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 116

Às vezes desconfia que está infeliz



“Nos dias seguintes pensa pela primeira vez na ideia de voltar a Porto Alegre ou pelo menos sair dali e se mudar para outro lugar. Começa a dormir demais. Levanta no meio da manhã com o motor dos barcos que voltam da pescaria ou a conversa da rapaziada que vem fumar maconha na escadinha. Passa mel e óleo de gergelim numa fatia bem grossa de pão integral e mastiga sentindo o vento salgado na cara. Quando entra lua cheia o tempo não muda até a lua mudar de fase. Vento leste traz tempo ruim. Quem lhe ensinou essas coisas? Não consegue lembrar. O inverno o entusiasma por razões que não compreende. Gosta de requentar toda noite o panelão de sopa, de sentir a lufada de ar polar queimando a pele quando abre o zíper da roupa de borracha depois de nadar. Fica à vontade na estação que os outros esperam passar. Sente a presença constante de uma coisa indefinida que está demorando para acontecer. Fases assim são o mais próximo que conhece da infelicidade. Às vezes desconfia que está infeliz. Mas se ser infeliz é isso, pensa, a vida é de uma clemência prodigiosa. Pode ser que ainda não tenha visto nem sombra do pior mas se sente preparado."

Daniel Galera (1979-). Barba ensopada de sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 238

Take wrong turns


Dying

“Are you afraid of dying? You need not be. For whether you are killed or die naturally, death has no more substantiality than the movements of... puppets. Or, to put it another way, it is no more real than the cutting of air with a knife or the bursting of bubbles, which reappear no matter how often they are broken.”

Yasutani Roshi (1885-1973), founder of the Sanbo Kyodan Zen Buddhist organization

Alegria

"Não há nada mais incômodo, desagradável e perturbador para uma sociedade autoritária, e sob a ideologia do sacrifício, do que um homem alegre. A alegria é uma agressão e ofende porque provoca inveja e rompe pactos de mediocridade. O homem saudável é revolucionário e alegre. A beleza pode ser, ao mesmo tempo, raiz e fruto do prazer. Só o prazer nos dá (com o contraponto da dor) o sabor da vida."

Roberto Freire (1927-2008). Ame e dê vexame

O demônio da depressão


"Claudia Weaver sentia-se oprimida pela inflexibilidade de seus pais: 'Eles queriam que eu fosse feliz da maneira deles'. Já na infância 'sentia que vivia em meu próprio mundo. Diferente, isolada e pequena, como se eu não contasse, e perdida em pensamentos, quase inconsciente de outras pessoas. Se eu estava no quintal, simplesmente perambulava por ali, sem ver coisa alguma'. Sua família fazia de conta que nada estava acontecendo. Na terceira séria da escola, ela começou a se retrair fisicamente. 'Eu detestava ser tocada, abraçada ou beijada, mesmo por pessoas de minha família; na escola, sentia-me muito cansada o tempo todo. Lembro dos professores me dizendo: Claudia, levante a cabeça da carteira. E ninguém dava muita atenção a isso. Lembro de ir a uma aula de ginástica e simplesmente adormecer em cima do aquecedor. Detestava minha escola e não tinha vontade de fazer amizades. Qualquer coisa que dissessem podia me ferir, e feria. Lembro de andar pelos corredores na sexta ou sétima série e não me interessar por ninguém e sentir que não me importava com nada. Sou extremamente amarga a respeito de minha infância, embora na época fosse também estranhamente orgulhosa de ser diferente do resto do mundo. A depressão? Estava sempre lá; só levou um tempo para ser nomeada. Eu tinha uma família muito amorosa, mas nunca ocorreu a eles – ou à maioria dos pais de minha geração – que sua filha pudesse estar deprimida'."

Andrew Solomon (1963-). O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 145

Tesão de viver


"...o tesão de viver só é possível ser alcançado se a vivência biológica e espiritual da pessoa pende mais, proporcionalmente, para o lado do prazer. Mas ninguém pode estar sentindo prazer por qualquer coisa se não sentir também, e ao mesmo tempo, alguma dor no contato ou vivência com o oposto do que nos causa prazer. Portanto, colocar o prato da balança com mais peso no sentido do prazer nos obriga a fazer uma opção ideológica e, em seguida, uma ação política que nos leve à rejeição do que nos causa qualquer forma de dor e, simultaneamente, a opção pela vivência mais plena do que nos provoca prazer. Estou querendo dizer que o gosto do prazer só é identificável (e isso é exclusivamente individual) se já sentimos o gosto da dor, que corresponde à vivência da experiência oposta do que nos provocou prazer. O contrário também é verdade. Exemplo: se eu não odiar as pessoas, não poderei amar ninguém; se eu não for odiado por algumas pessoas, não poderei ser amado por ninguém. Ou ainda, em outra instância: se eu não trabalhei, sofrendo e me frustrando em coisas contrárias à minha vocação, não poderei avaliar a totalidade do prazer que significa poder criar e produzir de acordo com meus potenciais humanos originais. Claro, embora sejam muito raras, existem algumas pessoas sortudas, aquelas que só conhecem o mel e o sal da existência, não tendo tido nunca necessidade de fazer o que não gosta e conviver com quem não ama."

Roberto Freire (1927-2008). Sem tesão não há solução. São Paulo: Trigrama, 1990, p. 61

Sociedade de consumo

"Devido à sua própria natureza competitiva, a sociedade burguesa não só faz os homens se enfrentarem entre si, faz também a massa humana enfrentar o mundo natural. Assim como os homens se transformam em mercadorias, o mesmo sucede com todos e cada um dos aspectos do reino natural que devem ser manufaturados, comercializados desenfreadamente.

Daí deriva a chamada sociedade de consumo. As necessidades são elaboradas pelos meios de comunicação de massa, para criar uma demanda pública de mercadorias perfeitamente inúteis, cada uma das quais foi criada cuidadosamente para se deteriorar ao cabo de um período de tempo previsto. O saque do espírito humano pelo mercado é comparável e paralelo ao saque da Terra pelo capital."

Roberto Freire (1927-2008). Sem tesão não há solução. São Paulo: Trigrama, 1990, p. 183