“Nos dias seguintes pensa pela primeira vez na ideia de voltar a
Porto Alegre ou pelo menos sair dali e se mudar para outro lugar. Começa
a dormir demais. Levanta no meio da manhã com o motor dos barcos que
voltam da pescaria ou a conversa da rapaziada que vem fumar maconha na
escadinha. Passa mel e óleo de gergelim numa fatia bem grossa de pão
integral e mastiga sentindo o vento salgado na cara. Quando entra lua
cheia o tempo não muda até a lua mudar de fase. Vento leste traz
tempo ruim. Quem lhe ensinou essas coisas? Não consegue lembrar. O
inverno o entusiasma por razões que não compreende. Gosta de requentar
toda noite o panelão de sopa, de sentir a lufada de ar polar queimando a
pele quando abre o zíper da roupa de borracha depois de nadar. Fica à
vontade na estação que os outros esperam passar. Sente a presença
constante de uma coisa indefinida que está demorando para acontecer.
Fases assim são o mais próximo que conhece da infelicidade. Às vezes
desconfia que está infeliz. Mas se ser infeliz é isso, pensa, a vida é
de uma clemência prodigiosa. Pode ser que ainda não tenha visto nem
sombra do pior mas se sente preparado."
Daniel Galera (1979-). Barba ensopada de sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 238
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