"Durante muitos dias Juan de Dios Martínez pensou nos quatro infartos
que Herminia Noriega sofreu antes de morrer. Às vezes punha-se a pensar
nisso enquanto comia ou enquanto urinava no banheiro de uma cafeteria
ou num pê-efe frequentado por policiais judiciários, ou antes de dormir,
justo no momento de apagar a luz, ou talvez segundos antes de apagar a
luz, e quando isso acontecia simplesmente não podia apagar a luz e se
levantava da cama, se aproximava da janela e espiava a
rua, uma rua vulgar, feia, silenciosa, escassamente iluminada, depois
ia à cozinha, botava a água para ferver e fazia um café, e às vezes,
enquanto tomava o café quente e sem açúcar, um café de merda, ligava a
tevê e ficava assistindo aos programas que chegavam pelos quatro pontos
cardeais do deserto, nessa hora pegava os canais mexicanos e americanos,
canais de loucos aleijados que cavalgavam sob as estrelas e
cumprimentavam com palavras ininteligíveis, em espanhol ou spanglish,
mas ininteligíveis todas aquelas porras de palavras, e então Juan de
Dios Martínez deixava a xícara de café em cima da mesa, cobria a cabeça
com as mãos e de seus lábios escapava um ulular tênue e preciso, como se
chorasse ou lutasse para chorar, mas quando finalmente retirava as mãos
apareciam, iluminadas pela tela da tevê, suas fuças de sempre, sua pele
infecunda e seca de sempre, sem o mais ínfimo rastro de uma lágrima."
Roberto Bolaño (1953-2003). 2666. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 510-11
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