quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Cada pessoa é um enigma




“...até que um belo dia ele se enforcou. Não deixou nenhum bilhete, e ninguém soube explicar. Menos ainda sua mulher e suas filhas. Quando fui à casa do enforcado dar meus pêsames, tive a impressão de que o sofrimento havia sido adiado pelo impacto da surpresa: como se em todos aqueles anos nunca houvesse lhes ocorrido que ali, na sua própria casa, vivia com elas um estranho disfarçado, com identidade falsa, um marajá na figura de marceneiro, e agora o haviam chamado de volta, e ele, de imediato, sem uma palavra, despira seu disfarce de tantos anos e partira para retornar ao seu lugar. O último homem, literalmente o último homem no mundo que iria se enforcar. Jamais em nossa vida nenhuma de nós poderia imaginar que isto lhe passava pela cabeça. E sem nenhum motivo: pensando bem a vida o tratou muito bem, família, amigos, trabalho, era o tipo de homem, como dizem, satisfeito com o que tinha, e que sabia dar valor às coisas. Por exemplo, ele amava comer, sentar-se aqui nesta poltrona todas as noites e adormecer segurando o jornal, e amava especialmente aquelas suas óperas, que ouvia e cantava de manhã até a noite e, bem, às vezes nós achávamos que era um pouco exagerado, mas ficávamos de boca fechada, por que ele não poderia se divertir um pouco? Afinal, existem maridos cuja metade do salário vai embora na loteria esportiva e coisas do gênero, não perdem um jogo de futebol, e com ele eram as óperas. O senhor há de concordar que é um passatempo de gente culta. E também adorava divertir as pessoas, era o campeão das pegadinhas – campeão nada, rei. Talvez o senhor não acredite que naquela manhã, no máximo três horas antes da tragédia, ele estava fazendo uma omelete para as meninas e fingiu que engolia o azeite fervendo. Que susto nós levamos, até que começamos a rir. O que mais se pode dizer, meu senhor, cada pessoa é um enigma, até mesmo as mais próximas da gente.”

Amós Oz. O mesmo mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 101

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