segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

abandonar tudo



"A porta escancarada convidava-me a abandonar tudo, a sair sem destino — um, dois, um dois — e não parar tão cedo. Nenhum sargento me mandaria fazer meia-volta. Os meus passos me levariam para oeste, e à medida que me embrenhasse no interior, perderia as peias que me impuseram, como a um cavalo que aprende a trotar. Tornar-me-ia de novo meio cigano, meio selvagem, andaria numa corrida vagabunda pelas fazendas sertanejas, ouviria as cantigas dos cantadores e as conversas das velhas nas fontes, veria à beira dos caminhos estreitos pequenas cruzes de madeira, as mesmas que vi há muitos anos, enfeitadas de flores secas e fitas desbotadas. Indicaria uma delas, estirando o beiço. Quem teria morrido ali? E alguém me informaria, repetindo as histórias dos cantadores e as conversas das velhas nas fontes: — 'Um sujeito que namorou a noiva de outro'."

Graciliano Ramos (1892-1953). Angústia (1936). 29ª ed. São Paulo: Record, 1984. p. 80

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