domingo, 23 de dezembro de 2007
Grandes filmes
O sétimo selo (1957, de Ingmar Bergman)
Fanny e Alexander (1982, de Ingmar Bergman)
A insustentável leveza do ser
Tudo sobre minha mãe (de Pedro Almodóvar)
Fale com ela (de Pedro Almodóvar)
Má educação (de Pedro Almodóvar)
Volver (Voltar, de Pedro Almodóvar)
Matrix
Beleza Americana
Alta Fidelidade (de Stephen Frears)
The Doors (de Oliver Stone)
Noivo neurótico, noiva nervosa (1977, de Woody Allen)
Igual a tudo na vida (de Woody Allen)
Hannah e suas irmãs (1987, de Woody Allen)
Match Point (de Woody Allen)
Janela Indiscreta (1954, de Alfred Hitchcock)
Um corpo que cai (1958, de Alfred Hitchcock)
Disque M para matar (1953, de Alfred Hitchcock)
A Festa de Babette
Cidade de Deus
A Queda - as últimas horas de Hitler
Oito mulheres
A janela da frente
A vida de David Gale (de Alan Parker)
Batismo de sangue
Testemunha de Acusação (1957)
Morte no Nilo (1978)
Alguns livros que me marcaram
Bufo & Spallanzani (Rubem Fonseca)
Romance Negro (Rubem Fonseca)
Feliz Ano Novo (Rubem Fonseca)
Encontro Marcado (Fernando Sabino)
Coiote (Roberto Freire)
O Sorriso do Lagarto (João Ubaldo Ribeiro)
O Retrato do Rei (Ana Miranda)
Chatô, o rei do Brasil (Fernando Morais)
Olga (Fernando Morais)
Literatura estrangeira (traduções)
Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez)
A Náusea (Jean Paul Sartre)
A Idade da Razão (Jean Paul Sartre)
Morte na praia (Agatha Christie)
O caso dos dez negrinhos (Agatha Christie)
Os cinco porquinhos (Agatha Christie)
Uma Certa Justiça (P. D. James)
O Exorcista (Willian Peter Blaty)
O Grande Gatsby (F. S. Fitzgerald)
Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (José Murilo de Carvalho)
Desenvolvimiento de la ciudadanía en Brasil (José Murilo de Carvalho)
O queijo e os vermes (Carlo Ginzburg)
Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda)
Casa Grande & Senzala (Gilberto Freyre)
Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado Jr.)
O espelho de Próspero (Richard Morse)
O Grande Massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (Robert Darnton)
O Príncipe (N. Maquiavel)
Guerreiros e camponeses (Georges Duby)
Literatura infanto-juvenil
A Mina de Ouro (Maria José Dupré)
A Ilha Perdida (Maria José Dupré)
O Escaravelho do diabo (Lúcia Machado de Almeida)
A Morte tem sete herdeiros (Stella Carr e Ganymèdes José)
O Mistério do cinco estrelas (Marcos Rey)
Sozinha no mundo (Marcos Rey)
Um cadáver ouve rádio (Marcos Rey)
O enigma do autódromo de Interlagos (Stella Carr)
Estranhas luzes no bosque (Stella Carr)
O segredo do Museu Imperial (Stella Carr)
Literatura estrangeira (originais)
El amor en los tiempos del cólera (Gabriel García Marquez)
Les trois mousquetaires (Alexandre Dumas)
Le comte de Monte-Cristo (Alexandre Dumas)
La casa de los espíritus (Isabel Allende)
La vida exagerada de Martín Romaña (Alfredo Brice Echenique)
Unnatural Causes (P. D. James)
Death of an expert witness (P. D. James)
Gulliver’s travels (Jonathan Swift)
Simisola (Ruth Rendell)
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
Enivrez-vous
Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront: "Il est l'heure de s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise."
Charles Baudelaire [1821-1867]
domingo, 16 de dezembro de 2007
Passeio Socrático
O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. [...]
Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. [...]
Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.
Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. [...]
Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático, respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: “Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.”
Frei Beto
segunda-feira, 10 de dezembro de 2007
J'accuse
A seguir segue o trecho final da carta aberta endereçada ao presidente da França, escrita pelo autor de Germinal, Émile Zola, em 1898. Se os escritores e intelectuais brasileiros tivessem a mesma coragem [o que não é o caso], teríamos, nos jornais do Brasil, dez J'accuse por dia:
[...] J'accuse le lieutenant-colonel du Paty de Clam d'avoir été l'ouvrier diabolique de l'erreur judiciaire, en inconscient, je veux le croire, et d'avoir ensuite défendu son oeuvre néfaste, depuis trois ans, par les machinations les plus saugrenues et les plus coupables.
J'accuse le général Mercier de s'être rendu complice, tout au moins par faiblesse d'esprit, d'une des plus grandes iniquités du siècle.
J'accuse le général Billot d'avoir eu entre les mains les preuves certaines de l'innocence de Dreyfus et de les avoir étouffées, de s'être rendu coupable de ce crime de lèse-humanité et de lèse-justice, dans un but politique et pour sauver l'état-major compromis.
J'accuse le général de Boisdeffre et le général Gonse de s'être rendus complices du même crime, l'un sans doute par passion cléricale, l'autre peut-être par cet esprit de corps qui fait des bureaux de la guerre l'arche sainte, inattaquable.
J'accuse le général de Pellieux et le commandant Ravary d'avoir fait une enquête scélérate, j'entends par là une enquête de la plus monstrueuse partialité, dont nous avons, dans le rapport du second, un impérissable monument de naïve audace.
J'accuse les trois experts en écritures, les sieurs Belhomme, Varinard et Couard, d'avoir fait des rapports mensongers et frauduleux, à moins qu'un examen médical ne les déclare atteints d'une maladie de la vue et du jugement.
J'accuse les bureaux de la guerre d'avoir mené dans la presse, particulièrement dans l'Éclair et dans L'Echo de Paris, une campagne abominable, pour égarer l'opinion et couvrir leur faute.
J'accuse enfin le premier conseil de guerre d'avoir violé le droit, en condamnant un accusé sur une pièce restée secrète, et j'accuse le second conseil de guerre d'avoir couvert cette illégalité, par ordre, en commettant à son tour le crime juridique d'acquitter sciemment un coupable.
En portant ces accusations, je n'ignore pas que je me mets sous le coup des articles 30 et 31 de la loi sur la presse du 29 juillet 1881, qui punit les délits de diffamation. Et c'est volontairement que je m'expose.
Quant aux gens que j'accuse, je ne les connais pas, je ne les ai jamais vus, je n'ai contre eux ni rancune ni haine. Ils ne sont pour moi que des entités, des esprits de malfaisance sociale. Et l'acte que j'accomplis ici n'est qu'un moyen révolutionnaire pour hâter l'explosion de la vérité et de la justice.
Je n'ai qu'une passion, celle de la lumière, au nom de l'humanité qui a tant souffert et qui a droit au bonheur. Ma protestation enflammée n'est que le cri de mon âme. Qu'on ose donc me traduire en cour d'assises et que l'enquête ait lieu au grand jour ! J'attends.
Veuillez agréer, monsieur le Président, l'assurance de mon profond respect.
Émile Zola, 13 janvier 1898
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
sábado, 10 de novembro de 2007
Lisboa
"Lisboa"
Quando atravesso - vinda do sul - o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas -
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
- Digo para ver
Sophia de Mello Breyner Andresen
O CAPTAIN! MY CAPTAIN!
The ship has weather'd every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up--for you the flag is flung--for you the bugle trills;
For you bouquets and ribbon'd wreaths--for you the shores a-crowding;
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head;
It is some dream that on the deck,
You've fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchor'd safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;
Exult, O shores, and ring, O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
Walt Whitman [1819-1892]
Essa cova em que estás...
- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca
— Será
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.
domingo, 28 de outubro de 2007
Entrevista com Clarice Lispector
Relato de Júlio Lerner:
De minha sala na redação de "Panorama" até o saguão dos estúdios tenho de percorrer cerca de
Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a um seu semelhante... Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para lhe explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli (ela não sabe que eu sei, sua melhor amiga), entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados, Clarice me olha, o setor técnico envia pelos alto-falantes o agudo sinal de mil ciclos, o olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, e fica encolhida e calada, o calor está ficando insuportável e o ar condicionado não funciona, está quebrado, chega o aviso que em um minuto o VT já estará ajustado, são quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do Terceiro Mundo que me possibilita estar agora frente a frente a ela, Clarice me olha, medrosa, assustada e seu olhar me pede para que eu a tranqüilize...
-"Ok, Juliooooo... tudo pronto", a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda a equipe para sair, cabo-man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço, Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás, peço silêncio total e depois de uns dez segundos ecoa um "gravandooooo"...
Silêncio.
Olga e Miriam na parte escura de um dos lados, Moacir escondido atrás da câmera, eu que me posiciono ao lado da câmera para não aparecer, a fim de que o público não descubra minha impiedosa cara-de-pau e ... Clarice. Solitária, no centro do estúdio... Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos... Estou completamente desconcentrado, fico um longo minuto em silêncio fitando Clarice, estou oco, vazio, não sei o que dizer... Clarice me olha, curiosa mas vigilante, defendida... Sou o senhor do castelo e - prepotente - guardo comigo a chave desta prisão... Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade.
Não sabes, Clarice... Te conheci agora, porém te conheço há muito tempo... Te amo, te respeito e no entanto agora começo a te invadir. A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos tiranos. Começa a entrevista [...]
A entrevista avança. Seus olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Quero mergulhar, por vezes consigo... Clarice agora está encapotada, ela se deixa agarrar mas logo escapa e volta, e me pega, e me sugere o longe e o não-dizível, depois se cala... E quando nada mais espero, ela volta a falar... Faço uma anti-entrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.
Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: "Chega!". Clarice pressente que por trás de meu sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico autodenominado "repórter" e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e partir.
Avanço, invado, penetro, novamente invado e estrategicamente recuo, mais uma vez penetro. E minha tola vaidade de macho sopra ao pé do ouvido para que eu vá em frente, prossiga.
Estou dividido mas prossigo, mandam um sinal que tenho só cinco minutos... Agora quatro... Três... Sou oportunista descarado... Faltam dezessete para as cinco... Sinto que não a verei nunca mais, estou emocionado, mais duas ou três perguntas e a entrevista se encerra com Clarice dizendo: "... bom, agora eu morri... Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto estou morta. Estou falando do meu túmulo..."
Silêncio pesado no estúdio B. Um longo, e triste, e terrível silêncio.
A premonição.
Está encerrada a entrevista.
Clarice se levanta, nada digo, ajudo-a a tirar o microfone de lapela.
Silêncio milenar no estúdio.
Miriam, a estagiária, chora baixinho, Olga está calada, Clarice e eu nos olhamos no fundo dos olhos...
Trechos da entrevista:
- A sua produção ocorre com freqüência?
- Tenho períodos de produzir intensamente e, tem períodos hiatos, em que a vida fica intolerável...
- Esses hiatos são longos?
- Depende. Podem ser longos, e eu vegeto nesses períodos, ou então, para me salvar, eu me lanço logo numa outra coisa, como por exemplo, acabei a novela, estou meio oca, então estou fazendo uma história para criança.
- É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?
- Quando eu me comunico com criança é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade eu estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma. Aí é difícil.
[...]
- Se você não pudesse mais escrever, você morreria?
- Eu acho que quando eu não escrevo eu estou morta.
- Esse período...
- É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, [mas] é necessário, para haver um esvaziamento da cabeça, para poder nascer alguma outra coisa..., se nascer...É tudo tão incerto.
[...]
- Eu escrevo sem esperança que o que eu escrevo altere alguma coisa.
- Então, porque continuar escrevendo, Clarice?
- E eu sei?... [Clarice ascende um cigarro] Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas, a gente está querendo é desabrochar, de um modo ou de outro.
[...]
- Fui ler aos 13 anos Hermann Hesse, O Lobo da Estepe, e tomei um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando, jogando fora.
- Isso acontece ainda agora, de você produzir alguma coisa e rasgar?
- [...] eu rasgo sim.
- É produto de reflexão, ou uma emoção...?
- Raiva, um pouco de raiva.
- Com quem?
- Comigo mesma.
- Porque, Clarice?
- Sei lá, estou meio cansada...
- Do quê?
- De mim mesma.
- Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?
- Bom, agora eu morri. Vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.
Clarice Lispector [1925-1977]
sábado, 27 de outubro de 2007
Exausto
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes."
Adélia Prado
Nobody, not even the rain, has such small hands
"somewhere i have never travelled,gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near
your slightest look will easily unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully,mysteriously)her first rose
or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully,suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;
nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility:whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing
(i do not know what it is about you that closes
and opens;only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain,has such small hands"
E. E. Cummings [1894-1962]
From Complete Poems: 1904-1962 by E. E. Cummings,
edited by George J. Firmage.
Zuzu Angel
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar..."
Chico Buarque
Strange Days
And through their strange hours
We linger alone
Bodies confused
Memories misused
As we run from the day
To a strange night of stone"
Jim Morrison [1943-1971]
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
Ler
Friedrich Nietzsche [1844-1900]
Citado por Rubem Alves, no livro "Ao professor, com o meu carinho"
Ai que prazer, não cumprir um dever
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca..."
Fernando Pessoa
Stopping by Woods on a Snowy Evening
His house is in the village though.
He will not see me stopping here,
To watch his woods fill up with snow.
My little horse must think it queer,
To stop without a farmhouse near,
Between the woods and frozen lake,
The darkest evening of the year.
He gives his harness bells a shake,
To ask if there is some mistake.
The only other sound's the sweep,
Of easy wind and downy flake.
The woods are lovely, dark and deep,
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep."
Robert Frost [1874-1963)
Café bom
"Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé."
"Infância", de Carlos Drummond de Andrade
Dona Doida
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove."
Adélia Prado
O texto acima foi extraído do livro "Poesia Reunida", Editora Siciliano - 1991, São Paulo, página 108.
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
Escrever
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.
É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.
Trecho de "Carta ao Zézim", de Caio Fernando Abreu
domingo, 21 de outubro de 2007
The Picture of Dorian Gray
"Parker has brought out the drinks, and if you stay any longer in this glare, you will be quite spoiled, and Basil will never paint you again. You really must not allow yourself to become sunburnt. It would be unbecoming."
"What can it matter?"
"It should matter everything to you, Mr. Gray."
"Why?"
"Because you have the most marvellous youth, and youth is the one thing worth having."
"I don't feel that, Lord Henry."
"No, you don't feel it now. Some day, when you are old and wrinkled and ugly, when thought has seared your forehead with its lines, and passion branded your lips with its hideous fires, you will feel it, you will feel it terribly. Now, wherever you go, you charm the world. Will it always be so? . . . You have a wonderfully beautiful face, Mr. Gray. Don't frown. You have."
"And beauty is a form of genius-- is higher, indeed, than genius, as it needs no explanation. It is of the great facts of the world, like sunlight, or spring-time, or the reflection in dark waters of that silver shell we call the moon. It cannot be questioned. It has its divine right of sovereignty. It makes princes of those who have it. You smile? Ah! when you have lost it you won't smile."
". . . People say sometimes that beauty is only superficial. That may be so, but at least it is not so superficial as thought is. To me, beauty is the wonder of wonders. It is only shallow people who do not judge by appearances. The true mystery of the world is the visible, not the invisible."
". . . Yes, Mr. Gray, the gods have been good to you. But what the gods give they quickly take away. You have only a few years in which to live really, perfectly, and fully. When your youth goes, your beauty will go with it, and then you will suddenly discover that there are no triumphs left for you, or have to content yourself with those mean triumphs that the memory of your past will make more bitter than defeats. Every month as it wanesbrings you nearer to something dreadful."
Trecho do livro "The Picture of Dorian Gray" [1891], de Oscar Wilde
Lisboa, o Tejo e o Mar
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu".
Fernando Pessoa
sábado, 20 de outubro de 2007
A Dança dos Cabelos
E é nesta mulher e neste homem, que o padre, desobedecendo ordens do bispo, não deixou que fossem enterrados no cemitério pelo profano ato que praticaram e cuja história nesta região é conhecida por todos, não sendo também nenhum segredo que são os meus pais e que ainda hoje, em certas noites, se amam às escondidas entre juras de um velho desejo e vinhos que melam os seus corpos, que eu estou pensando neste início de amanhecer. Enquanto fumo mais um cigarro e rodando entre os meus dedos esta chave, ouço os ventos que estremecem as janelas, assoviando aos meus ouvidos antigas canções de ninar."
Trecho do romance "A Dança dos Cabelos", de Carlos Herculano Lopes
sexta-feira, 19 de outubro de 2007
The Great Gatsby
“What!” I exclaimed. “Oh, I beg your pardon.”
“I thought you knew, old sport. I’m afraid I’m not a very good host.”
He smiled understandingly—much more than understandingly. It was one of those rare smiles with a quality of eternal reassurance in it, that you may come across four or five times in life. It faced—or seemed to face—the whole external world for an instant, and then concentrated on you with an irresistible prejudice in your favor. It understood you just so far as you wanted to be understood, believed in you as you would like to believe in yourself, and assured you that it had precisely the impression of you that, at your best, you hoped to convey. Precisely at that point it vanished—and I was looking at an elegant young rough-neck, a year or two over thirty, whose elaborate formality of speech just missed being absurd. Some time before he introduced himself I’d got a strong impression that he was picking his words with care.
The Great Gatsby, 1925
Delicado
— Você tem namorada?
— Não.
— Nem teve?
— Nem tive.
Foi o bastante. O velho quase pôs a casa abaixo. Assombrou aquelas mulheres transidas com os vaticínios mais funestos: "Vocês estão querendo ver a caveira do rapaz?". Virou-se para d. Flávia:
— Isso é um crime, ouviu?, é um crime o que vocês estão fazendo com esse rapaz! Vem cá, Eusébio, vem cá! Implacável, submeteu o sobrinho a uma exibição. Apontava:
— Isso é jeito de homem, é? Esse rapaz tem que casar, rápido!
Quando o tio despediu-se, o pânico estava espalhado na família. Mãe e filhas se entreolharam: "É mesmo, é mesmo! Nós temos sido muito egoístas! Nós não pensamos no Eusebiozinho!". Quanto ao rapaz, tremia num canto. Ressentido ainda com a franqueza bestial do tio, bufou:
— Está muito bem assim!
A verdade é que já o apavorava a perspectiva de qualquer mudança numa vida tão doce. Mas a mãe chorou, replicou: "Não, meu filho. Seu tio tem razão. Você precisa casar, sim". Atônito, Eusebiozinho olha em torno. Mas não encontrou apoio. Então, espavorido, ele pergunta:
— Casar pra quê? Por quê? E vocês? — Interpela as irmãs: — Por que vocês não se casaram?
A resposta foi vaga, insatisfatória:
— Mulher é outra coisa. Diferente.
Trecho do conto "Delicado", de Nelson Rodrigues
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Fernando Pessoa
Copromancia
No dia seguinte comprei uma Polaroid. Com ela, fotografei diariamente as minhas fezes, usando um filme colorido. No fim de um mês, possuía um arquivo de sessenta e duas fotos -, meus intestinos funcionam no mínimo duas vezes por dia -, que foram colocadas num álbum. Além das fotografias de meus bolos fecais, passei a acrescentar informações sobre coloração. As cores das fotos nunca são precisas. As entradas eram diárias."
Trecho do conto "Copromancia", de Rubem Fonseca
Lúcia McCartney
Trecho do conto "Lúcia McCartney", de Rubem Fonseca
O livro de panegíricos
Vejo o último jornal da noite. Nada.
Ando pela casa. Entro na biblioteca, mas não leio nenhum livro. Tomo um Lexotan do velho, mas mesmo assim não consigo dormir. Sou duro na queda.
Às sete horas da manhã vou ver o velho. Ele já está acordado. Sigo as instruções. Primeiro lavo os olhos dele com água boricada. Depois tiro o fraldão que está sujo de merda e urina. Limpo o velho com uma esponja, sentindo um nojo muito grande. Visto um pijama nele.
“Vou trazer seu chá com torradas.”
Trecho do conto "O livro de panegíricos", de Rubem Fonseca
A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro
No tempo em que trabalhava na companhia de águas e esgotos ele pensou em abandonar tudo para viver de escrever. Mas João, um amigo que havia publicado um livro de poesia e outro de contos e estava escrevendo um romance de seiscentas páginas, lhe disse que o verdadeiro escritor não devia viver do que escrevia, era obsceno, não se podia servir à arte e a Mammon ao mesmo tempo, portanto era melhor que Epifânio ganhasse o pão de cada dia na companhia de águas e esgotos, e escrevesse à noite. Seu amigo era casado com uma mulher que sofria dos rins, pai de um filho asmático e hospedeiro de uma sogra débil mental e mesmo assim cumpria suas obrigações para com a literatura. Augusto voltava para casa e não conseguia se livrar dos problemas da companhia de águas e esgotos; uma cidade grande gasta muita água e produz muito excremento. João dizia que havia um ônus a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio dos tolos, agressão dos invejosos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso. E provou que tinha razão morrendo de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar seu romance de seiscentas páginas. Que a viúva jogou no lixo, junto com outros papéis velhos. O fracasso de João não tirou a coragem de Epifânio. Ao ganhar um prêmio numa das muitas loterias da cidade, pediu demissão da companhia de águas e esgotos para dedicar-se ao trabalho de escrever, e adotou o nome de Augusto.
Agora ele é escritor e andarilho. Assim, quando não está escrevendo - ou ensinando as putas a ler -, ele caminha pelas ruas. Dia e noite, anda nas ruas do Rio de Janeiro."
Trecho do conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro", de Rubem Fonseca
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
Café
que não admite acompanhamento sólido. Mas eu o driblo,
saboreando, junto com ele, o cheiro das
torradas-na-manteiga que alguém pediu na mesa próxima"
Mário Quintana
Chocolates
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.
Fernando Pessoa
Le Cardinal de Richelieu
M. de Tréville attendait le roi à cette chute. Il connaissait le roi de longue main ; il avait compris que toutes ses plaintes n'étaient qu'une préface, une espèce d'excitation pour s'encourager lui-même, et que c'était où il était arrivé enfin qu'il en voulait venir.
- Et en quoi ai-je été assez malheureux pour déplaire à Votre Majesté ? demanda M. de Tréville en feignant le plus profond étonnement.
- Est-ce ainsi que vous faites votre charge, monsieur ? continua le roi sans répondre directement à la question de M. de Tréville ; est-ce pour cela que je vous ai nommé capitaine de mes mousquetaires, que ceux-ci assassinent un homme, émeuvent tout un quartier et veulent brûler Paris sans que vous en disiez un mot ? Mais au reste, continua le roi, sans doute que je me hâte de vous accuser, sans doute que les perturbateurs sont en prison et que vous venez m'annoncer que justice est faite.
- Sire, répondit tranquillement M. de Tréville, je viens vous la demander au contraire.
- Et contre qui ? s'écria le roi.
- Contre les calomniateurs, dit M. de Tréville.
- Ah ! voilà qui est nouveau, reprit le roi. N'allez-vous pas me dire que vos trois mousquetaires damnés, Athos, Porthos et Aramis, et votre cadet de Béarn ne se sont pas jetés comme des furieux sur le pauvre Bernajoux et ne l'ont pas maltraité de telle façon qu'il est probable qu'il est en train de trépasser à cette heure ! N'allez-vous pas dire qu'ensuite ils n'ont pas fait le siège de l'hôtel du duc de La Trémouille, et qu'ils n'ont point voulu le brûler ! ce qui n'aurait peut-être pas été un très grand malheur en temps de guerre, vu que c'est un nid de huguenots ; mais ce qui, en temps de paix, est un fâcheux exemple. Dites, n'allez-vous pas nier tout cela ?
- Et qui vous a fait ce beau récit, sire ? demanda tranquillement M. de Tréville.
- Qui m'a fait ce beau récit, monsieur ! et qui voulez-vous que ce soit, si ce n'est celui qui veille quand moi je dors, qui travaille quand je m'amuse, qui mène tout au-dedans et au-dehors du royaume, en France comme en Europe ?
- Sa Majesté veut parler de Dieu, sans doute, dit M. de Tréville, car je ne connais que Dieu qui soit si fort au-dessus de Sa Majesté.
- Non, monsieur ; je veux parler du soutien de l'Etat, de mon seul serviteur, de mon seul ami, de M. le cardinal."
Alexandre Dumas. Les trois mousquetaires (1844)
Bufo & Spallanzani
Guedes passou a tarde na Biblioteca Nacional lendo edições de O Globo e do Jornal do Brasil.
Mais tarde estava novamente batendo à minha porta, vestido com o seu blusão ensebado.
Fui logo dizendo, “seu Guedes, estou muito ocupado escrevendo um livro, Bufo & Spallanzani, acho que lhe falei sobre isso, e vou viajar, tenho que tomar algumas providências antes...”
“É coisa muito rápida”, disse o tira, “é sobre dona Delfina, aquela senhora da sociedade que apareceu morta dentro do carro.”
Abri novamente a porta para ele entrar. Fomos para a biblioteca.
“Ela foi assassinada”, disse Guedes.
“Assassinada? Mas ainda ontem o senhor me disse que ela havia se matado.”
“Engano nosso. Foi assassinada.”
“Já prenderam o criminoso?”
“Ainda não.”
“Sabem quem foi?”
Guedes ficou calado. Passou o dedo na testa, de ponta a ponta, e limpou no blusão.
“Afinal o que o senhor quer de mim? Já lhe disse que estou muito ocupado.”
“Não creio que a curiosidade seja uma coisa maligna num policial. É o nosso trabalho.” Estava se referindo à nossa conversa do dia anterior.
“Talvez o trabalho policial seja maligno”, eu disse.
“É possível”, disse o tira, “mas alguém tem que fazê-lo.”
“E afinal?”
“Bem”, ele disse, limpando a testa novamente, “suspeito que dona Delfina tinha um amante. Como o senhor anda nesse meio talvez tivesse ouvido alguma coisa.”
“Um amante? Absurdo. Dona Delfina era uma senhora de moral inatacável.”
“O senhor disse num dos seus livros que a fidelidade é um conceito burguês e que a honra de uma mulher nada tem a ver com o seu comportamento sexual.”
“Em que livro eu disse isso?”
“Em Os amantes.”
“O senhor leu Os amantes?”
“Estou lendo.”
“Vou lhe dizer uma coisa: o ponto de vista, a opinião, as crenças, as presunções, os valores, as inclinações, as obsessões, as concepções et cetera dos personagens, mesmo os principais, mesmo na primeira pessoa, como é o caso de Os amantes, não são necessariamente os mesmos do autor. Muitas vezes o autor pensa exatamente o oposto do seu personagem.”
“Gustavo Flávio é o seu verdadeiro nome?”
O que saberia ele do meu passado? O meu trabalho na Panamericana de Seguros? O meu internamento e fuga do Manicômio Judiciário? Olhei bem o seu rosto magro, os olhos amarelos; o que saberia ele?
Trecho do romance "Bufo & Spallanzani", de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras
O Cobrador
Só rindo. Esses caras são engraçados.
Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente.
Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso.
São quatrocentos cruzeiros.
Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.
Não tem não o quê?
Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.
Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.
Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!"
Trecho do conto "O Cobrador", de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras
Confidência do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Carlos Drummond de Andrade
quarta-feira, 17 de outubro de 2007
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Adélia Prado
domingo, 14 de outubro de 2007
O Cheiro do Ralo
sábado, 13 de outubro de 2007
Roberto Freire
"The most important kind of freedom is to be what you really are. You trade in your reality for a role. You trade in your sense for an act. You give up your ability to feel, and in exchange, put on a mask. There can't be any large-scale revolution until there's a personal revolution, on an individual level. It's got to happen inside first."
Jim Morrison [1943-1971]
sexta-feira, 12 de outubro de 2007
Borges
Germinal
El amor en los tiempos del cólera
A los ochenta y un años tenía bastante lucidez para darse cuenta de que estava prendido a este mundo por unas hilachas tenues que podían romperse sin dolor con un simple cambio de posición durante el sueño, y si hacía lo posible para mantenerlas era por el terror de no encontrar a Dios en la oscuridad de la muerte". Gabriel García Márquez, 1985.
Teacher Man
A Conquista da América
quinta-feira, 11 de outubro de 2007
Henry and June
“To Henry: Please understand Henry, that I’m in full rebellion against my own mind, that when I live, I live by impulse, by emotion, by white heat. June understood that. My mind didn’t exist when we walked insanely through
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Agatha Christie
American Beauty
Belo Horizonte, March, 2000.