domingo, 23 de dezembro de 2007

Grandes filmes

A excêntrica família de Antônia (1995, de Marllen Gorris)
O sétimo selo (1957, de Ingmar Bergman)
Fanny e Alexander (1982, de Ingmar Bergman)
A insustentável leveza do ser
Tudo sobre minha mãe (de Pedro Almodóvar)
Fale com ela (de Pedro Almodóvar)
Má educação (de Pedro Almodóvar)
Volver (Voltar, de Pedro Almodóvar)
Matrix
Beleza Americana
Alta Fidelidade (de Stephen Frears)
The Doors (de Oliver Stone)
Noivo neurótico, noiva nervosa (1977, de Woody Allen)
Igual a tudo na vida (de Woody Allen)
Hannah e suas irmãs (1987, de Woody Allen)
Match Point (de Woody Allen)
Janela Indiscreta (1954, de Alfred Hitchcock)
Um corpo que cai (1958, de Alfred Hitchcock)
Disque M para matar (1953, de Alfred Hitchcock)
A Festa de Babette
Cidade de Deus
A Queda - as últimas horas de Hitler
Oito mulheres
A janela da frente
A vida de David Gale (de Alan Parker)
Batismo de sangue
Testemunha de Acusação (1957)
Morte no Nilo (1978)

Alguns livros que me marcaram


Literatura Brasileira

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (Rubem Fonseca)

Bufo & Spallanzani (Rubem Fonseca)

Romance Negro (Rubem Fonseca)

Feliz Ano Novo (Rubem Fonseca)

Encontro Marcado (Fernando Sabino)

Coiote (Roberto Freire)

O Sorriso do Lagarto (João Ubaldo Ribeiro)

O Retrato do Rei (Ana Miranda)

Chatô, o rei do Brasil (Fernando Morais)

Olga (Fernando Morais)


Literatura estrangeira (traduções)

As Brumas de Avalon – 4 v. (Marion Zimmer Bradley)

Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez)

A Náusea (Jean Paul Sartre)

A Idade da Razão (Jean Paul Sartre)

Morte na praia (Agatha Christie)

O caso dos dez negrinhos (Agatha Christie)

Os cinco porquinhos (Agatha Christie)

Uma Certa Justiça (P. D. James)

O Exorcista (Willian Peter Blaty)

O Grande Gatsby (F. S. Fitzgerald)



Literatura especializada (Ciências Humanas)

Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (José Murilo de Carvalho)

Desenvolvimiento de la ciudadanía en Brasil (José Murilo de Carvalho)

O queijo e os vermes (Carlo Ginzburg)

Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda)

Casa Grande & Senzala (Gilberto Freyre)

Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado Jr.)

O espelho de Próspero (Richard Morse)

O Grande Massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (Robert Darnton)

O Príncipe (N. Maquiavel)

Guerreiros e camponeses (Georges Duby)


Literatura infanto-juvenil

A Mina de Ouro (Maria José Dupré)

A Ilha Perdida (Maria José Dupré)

O Escaravelho do diabo (Lúcia Machado de Almeida)

A Morte tem sete herdeiros (Stella Carr e Ganymèdes José)

O Mistério do cinco estrelas (Marcos Rey)

Sozinha no mundo (Marcos Rey)

Um cadáver ouve rádio (Marcos Rey)

O enigma do autódromo de Interlagos (Stella Carr)

Estranhas luzes no bosque (Stella Carr)

O segredo do Museu Imperial (Stella Carr)


Literatura estrangeira (originais)

El amor en los tiempos del cólera (Gabriel García Marquez)

Les trois mousquetaires (Alexandre Dumas)

Le comte de Monte-Cristo (Alexandre Dumas)

La Reine Margot (Alexandre Dumas)

La casa de los espíritus (Isabel Allende)

La vida exagerada de Martín Romaña (Alfredo Brice Echenique)

Unnatural Causes (P. D. James)

Death of an expert witness (P. D. James)

Gulliver’s travels (Jonathan Swift)

Simisola (Ruth Rendell)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Enivrez-vous

Il faut être toujours ivre. Tout est là: c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront: "Il est l'heure de s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise."

Charles Baudelaire [1821-1867]


domingo, 16 de dezembro de 2007

Passeio Socrático

Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população nos submete ao consumo de símbolos.

O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. [...]

Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. [...]

Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.

Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. [...]

Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático, respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: “Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.”

Frei Beto

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

J'accuse

Um dos mais ruidosos casos de erro judicial da história moderna da França envolveu Alfred Dreyfus (1859-1935), capitão do estado-maior geral do exército francês, numa acusação de espionagem em favor da Alemanha, por terem sido encontrados documentos com a sua caligrafia falsificada junto ao adido militar alemão em Paris. Foi, por isso, condenado à prisão perpétua na ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa. Em 1898, foram descobertas evidências de sua inocência e da culpa do major francês Esterhazy, espia alemão. Mas o segundo julgamento manteve o resultado do primeiro, provocando a indignação do escritor Émile Zola [foto acima] (1840-1902) que escreveu uma carta aberta ao presidente da França intitulada J’Accuse para denunciar a farsa. O escândalo dividiu a opinião pública entre dreyfusards (a esquerda progressista) e anti–dreyfusards (a direita conservadora), e surgiram fortes ataques anti–semitas por parte da direita, e anti–clericais, à esquerda — por ser Dreyfus judeu e a Igreja ligada ao Estado. Os debates arrastaram–se por mais oito anos, até o capitão ser totalmente inocentado, em 1906, tendo os jornais aproveitado do fato para fazer sensacionalismo.
A seguir segue o trecho final da carta aberta endereçada ao presidente da França, escrita pelo autor de
Germinal, Émile Zola, em 1898. Se os escritores e intelectuais brasileiros tivessem a mesma coragem [o que não é o caso], teríamos, nos jornais do Brasil, dez J'accuse por dia:

[...] J'accuse le lieutenant-colonel du Paty de Clam d'avoir été l'ouvrier diabolique de l'erreur judiciaire, en inconscient, je veux le croire, et d'avoir ensuite défendu son oeuvre néfaste, depuis trois ans, par les machinations les plus saugrenues et les plus coupables.

J'accuse le général Mercier de s'être rendu complice, tout au moins par faiblesse d'esprit, d'une des plus grandes iniquités du siècle.

J'accuse le général Billot d'avoir eu entre les mains les preuves certaines de l'innocence de Dreyfus et de les avoir étouffées, de s'être rendu coupable de ce crime de lèse-humanité et de lèse-justice, dans un but politique et pour sauver l'état-major compromis.

J'accuse le général de Boisdeffre et le général Gonse de s'être rendus complices du même crime, l'un sans doute par passion cléricale, l'autre peut-être par cet esprit de corps qui fait des bureaux de la guerre l'arche sainte, inattaquable.

J'accuse le général de Pellieux et le commandant Ravary d'avoir fait une enquête scélérate, j'entends par là une enquête de la plus monstrueuse partialité, dont nous avons, dans le rapport du second, un impérissable monument de naïve audace.

J'accuse les trois experts en écritures, les sieurs Belhomme, Varinard et Couard, d'avoir fait des rapports mensongers et frauduleux, à moins qu'un examen médical ne les déclare atteints d'une maladie de la vue et du jugement.

J'accuse les bureaux de la guerre d'avoir mené dans la presse, particulièrement dans l'Éclair et dans L'Echo de Paris, une campagne abominable, pour égarer l'opinion et couvrir leur faute.

J'accuse enfin le premier conseil de guerre d'avoir violé le droit, en condamnant un accusé sur une pièce restée secrète, et j'accuse le second conseil de guerre d'avoir couvert cette illégalité, par ordre, en commettant à son tour le crime juridique d'acquitter sciemment un coupable.

En portant ces accusations, je n'ignore pas que je me mets sous le coup des articles 30 et 31 de la loi sur la presse du 29 juillet 1881, qui punit les délits de diffamation. Et c'est volontairement que je m'expose.

Quant aux gens que j'accuse, je ne les connais pas, je ne les ai jamais vus, je n'ai contre eux ni rancune ni haine. Ils ne sont pour moi que des entités, des esprits de malfaisance sociale. Et l'acte que j'accomplis ici n'est qu'un moyen révolutionnaire pour hâter l'explosion de la vérité et de la justice.

Je n'ai qu'une passion, celle de la lumière, au nom de l'humanité qui a tant souffert et qui a droit au bonheur. Ma protestation enflammée n'est que le cri de mon âme. Qu'on ose donc me traduire en cour d'assises et que l'enquête ait lieu au grand jour ! J'attends.

Veuillez agréer, monsieur le Président, l'assurance de mon profond respect.

Émile Zola, 13 janvier 1898

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Que mal fiz eu aos deuses todos?


Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Fernando Pessoa

sábado, 10 de novembro de 2007

Lisboa

Digo:
"Lisboa"
Quando atravesso - vinda do sul - o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas -
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
- Digo para ver

Sophia de Mello Breyner Andresen

O CAPTAIN! MY CAPTAIN!

O Captain! my Captain! our fearful trip is done;
The ship has weather'd every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up--for you the flag is flung--for you the bugle trills;
For you bouquets and ribbon'd wreaths--for you the shores a-crowding;
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head;
It is some dream that on the deck,
You've fallen cold and dead.

My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchor'd safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;
Exult, O shores, and ring, O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

Walt Whitman [1819-1892]

Essa cova em que estás...

- Essa cova em que estás,

com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será
de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

domingo, 28 de outubro de 2007

Entrevista com Clarice Lispector

Em 1977, poucos meses antes de morrer, a escritora Clarice Lispector concedeu uma entrevista ao jornalista Júlio Lerner, da TV Cultura. Na minha opinião, essa entrevista é uma das maiores preciosidades da TV. Durou menos de 30 minutos, mas representa muito para a história da literatura brasileira. Abaixo segue um relato do Júlio Lerner, descrevendo os momentos anteriores à entrevista e mesmo algumas cenas que marcaram o durante e o logo depois (muito legal!). A seguir, coloquei alguns trechos da entrevista, que eu transcrevi direto do Youtube. Ali (no Youtube) vocês vão encontrar a entrevista na íntegra, e quem for ver, preste bastante atenção: o mais interessante é escutar a voz dela e ver o seu rosto enquanto ela fala. O seu olhar, os seus gestos, às vezes dizem muito mais do que as palavras.

Relato de Júlio Lerner:

De minha sala na redação de "Panorama" até o saguão dos estúdios tenho de percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar naquela curta caminhada... Talvez falar sobre A Paixão Segundo G.H... Ou quem sabe A Maçã no Escuro e Perto do Coração Selvagem... Vou recordando o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um estúdio e uma equipe fora dos horários normais para entrevistá-la. São quatro e quinze da tarde e disponho apenas de meia hora... Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes terei de desocupar o estúdio B... Estou correndo e antes mesmo de vê-la, a pressão do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista... Eu odeio a TV brasileira!... Só meia hora para ouvir Clarice... O pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou para conseguir essa brecha... Olho o relógio, não consigo me organizar, estou correndo, olho novamente o relógio, estou desconcentrado, atinjo o saguão dos estúdios e já a vejo ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma amiga, perdida no meio de um grande alvoroço...
Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a um seu semelhante... Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para lhe explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli (ela não sabe que eu sei, sua melhor amiga), entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados, Clarice me olha, o setor técnico envia pelos alto-falantes o agudo sinal de mil ciclos, o olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, e fica encolhida e calada, o calor está ficando insuportável e o ar condicionado não funciona, está quebrado, chega o aviso que em um minuto o VT já estará ajustado, são quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do Terceiro Mundo que me possibilita estar agora frente a frente a ela, Clarice me olha, medrosa, assustada e seu olhar me pede para que eu a tranqüilize...
-"Ok, Juliooooo... tudo pronto", a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda a equipe para sair, cabo-man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço, Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás, peço silêncio total e depois de uns dez segundos ecoa um "gravandooooo"...
Silêncio.
Olga e Miriam na parte escura de um dos lados, Moacir escondido atrás da câmera, eu que me posiciono ao lado da câmera para não aparecer, a fim de que o público não descubra minha impiedosa cara-de-pau e ... Clarice. Solitária, no centro do estúdio... Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos... Estou completamente desconcentrado, fico um longo minuto em silêncio fitando Clarice, estou oco, vazio, não sei o que dizer... Clarice me olha, curiosa mas vigilante, defendida... Sou o senhor do castelo e - prepotente - guardo comigo a chave desta prisão... Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade.
Não sabes, Clarice... Te conheci agora, porém te conheço há muito tempo... Te amo, te respeito e no entanto agora começo a te invadir. A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos tiranos. Começa a entrevista [...]
A entrevista avança. Seus olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Quero mergulhar, por vezes consigo... Clarice agora está encapotada, ela se deixa agarrar mas logo escapa e volta, e me pega, e me sugere o longe e o não-dizível, depois se cala... E quando nada mais espero, ela volta a falar... Faço uma anti-entrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.
Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: "Chega!". Clarice pressente que por trás de meu sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico autodenominado "repórter" e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e partir.
Avanço, invado, penetro, novamente invado e estrategicamente recuo, mais uma vez penetro. E minha tola vaidade de macho sopra ao pé do ouvido para que eu vá em frente, prossiga.
Estou dividido mas prossigo, mandam um sinal que tenho só cinco minutos... Agora quatro... Três... Sou oportunista descarado... Faltam dezessete para as cinco... Sinto que não a verei nunca mais, estou emocionado, mais duas ou três perguntas e a entrevista se encerra com Clarice dizendo: "... bom, agora eu morri... Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto estou morta. Estou falando do meu túmulo..."
Silêncio pesado no estúdio B. Um longo, e triste, e terrível silêncio.
A premonição.
Está encerrada a entrevista.
Clarice se levanta, nada digo, ajudo-a a tirar o microfone de lapela.
Silêncio milenar no estúdio.
Miriam, a estagiária, chora baixinho, Olga está calada, Clarice e eu nos olhamos no fundo dos olhos...


Trechos da entrevista:

- A sua produção ocorre com freqüência?

- Tenho períodos de produzir intensamente e, tem períodos hiatos, em que a vida fica intolerável...

- Esses hiatos são longos?

- Depende. Podem ser longos, e eu vegeto nesses períodos, ou então, para me salvar, eu me lanço logo numa outra coisa, como por exemplo, acabei a novela, estou meio oca, então estou fazendo uma história para criança.

- É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?

- Quando eu me comunico com criança é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade eu estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma. Aí é difícil.

[...]

- Se você não pudesse mais escrever, você morreria?

- Eu acho que quando eu não escrevo eu estou morta.

- Esse período...

- É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, [mas] é necessário, para haver um esvaziamento da cabeça, para poder nascer alguma outra coisa..., se nascer...É tudo tão incerto.

[...]

- Eu escrevo sem esperança que o que eu escrevo altere alguma coisa.

- Então, porque continuar escrevendo, Clarice?

- E eu sei?... [Clarice ascende um cigarro] Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas, a gente está querendo é desabrochar, de um modo ou de outro.

[...]

- Fui ler aos 13 anos Hermann Hesse, O Lobo da Estepe, e tomei um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando, jogando fora.

- Isso acontece ainda agora, de você produzir alguma coisa e rasgar?

- [...] eu rasgo sim.

- É produto de reflexão, ou uma emoção...?

- Raiva, um pouco de raiva.

- Com quem?

- Comigo mesma.

- Porque, Clarice?

- Sei lá, estou meio cansada...

- Do quê?

- De mim mesma.

- Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?

- Bom, agora eu morri. Vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.

Clarice Lispector [1925-1977]

sábado, 27 de outubro de 2007

Exausto

"Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes."

Adélia Prado

Nobody, not even the rain, has such small hands

"somewhere i have never travelled,gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look will easily unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens

(touching skilfully,mysteriously)her first rose

or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully,suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility:whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens;only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain,has such small hands"


E. E. Cummings [1894-1962]


From Complete Poems: 1904-1962 by E. E. Cummings,
edited by George J. Firmage.


Zuzu Angel

"Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar

Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar

Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar..."


Chico Buarque

Strange Days

"Strange days have found us
And through their strange hours
We linger alone
Bodies confused
Memories misused
As we run from the day
To a strange night of stone"

Jim Morrison [1943-1971]

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ler

"Se não estão virando as páginas de um livro, eles não conseguem pensar. Sempre que se dizem pensando, eles estão, na realidade, simplesmente respondendo a um estímulo: o pensamento que leram...Na verdade eles não pensam; eles reagem. [...] Vi isso com meus próprios olhos: pessoas bem dotadas que, aos trinta anos, haviam se arruinado de tanto ler. De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo - ler um livro é simplesmente algo depravado..."

Friedrich Nietzsche [1844-1900]

Citado por Rubem Alves, no livro "Ao professor, com o meu carinho"

Ai que prazer, não cumprir um dever

"Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca..."

Fernando Pessoa

Stopping by Woods on a Snowy Evening

"Whose woods these are I think I know,
His house is in the village though.
He will not see me stopping here,
To watch his woods fill up with snow.

My little horse must think it queer,
To stop without a farmhouse near,
Between the woods and frozen lake,
The darkest evening of the year.

He gives his harness bells a shake,
To ask if there is some mistake.
The only other sound's the sweep,
Of easy wind and downy flake.

The woods are lovely, dark and deep,
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep."

Robert Frost [1874-1963)

Café bom


"Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé."

"Infância", de Carlos Drummond de Andrade

Dona Doida

"Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso

com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.

Quando se pôde abrir as janelas,

as poças tremiam com os últimos pingos.

Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,

decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,

trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,

com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados,

meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço.

Só melhoro quando chove."

Adélia Prado

O texto acima foi extraído do livro "Poesia Reunida", Editora Siciliano - 1991, São Paulo, página 108.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Escrever

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.

Trecho de "Carta ao Zézim", de Caio Fernando Abreu

domingo, 21 de outubro de 2007

The Picture of Dorian Gray

"Parker has brought out the drinks, and if you stay any longer in this glare, you will be quite spoiled, and Basil will never paint you again. You really must not allow yourself to become sunburnt. It would be unbecoming."

"What can it matter?" cried Dorian Gray, laughing, as he sat down on the seat at the end of the garden.

"It should matter everything to you, Mr. Gray."

"Why?"

"Because you have the most marvellous youth, and youth is the one thing worth having."

"I don't feel that, Lord Henry."

"No, you don't feel it now. Some day, when you are old and wrinkled and ugly, when thought has seared your forehead with its lines, and passion branded your lips with its hideous fires, you will feel it, you will feel it terribly. Now, wherever you go, you charm the world. Will it always be so? . . . You have a wonderfully beautiful face, Mr. Gray. Don't frown. You have."

"And beauty is a form of genius-- is higher, indeed, than genius, as it needs no explanation. It is of the great facts of the world, like sunlight, or spring-time, or the reflection in dark waters of that silver shell we call the moon. It cannot be questioned. It has its divine right of sovereignty. It makes princes of those who have it. You smile? Ah! when you have lost it you won't smile."

". . . People say sometimes that beauty is only superficial. That may be so, but at least it is not so superficial as thought is. To me, beauty is the wonder of wonders. It is only shallow people who do not judge by appearances. The true mystery of the world is the visible, not the invisible."

". . . Yes, Mr. Gray, the gods have been good to you. But what the gods give they quickly take away. You have only a few years in which to live really, perfectly, and fully. When your youth goes, your beauty will go with it, and then you will suddenly discover that there are no triumphs left for you, or have to content yourself with those mean triumphs that the memory of your past will make more bitter than defeats. Every month as it wanesbrings you nearer to something dreadful."


Trecho do livro "The Picture of Dorian Gray" [1891], de Oscar Wilde


Lisboa, o Tejo e o Mar

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu".

Fernando Pessoa

sábado, 20 de outubro de 2007

A Dança dos Cabelos

"Mas, nas semanas seguintes à nossa separação, estive à beira da loucura, vagando como uma desesperada pelas ruas de Santa Cruz; até que, ingenuamente, resolvi ir mais longe à sua procura, já dominada por este silêncio que mais uma vez ameaça se apoderar de mim, agora que voltei e estou aqui para perceber estas sombras, que em seus vaivéns pelas paredes, parecem me dizer: pegue esta chave, abra esta gaveta, tire o revólver e resolva logo esta situação, como, em épocas remotas, fez um parente meu, que se deixou picar na garganta por uma das serpentes herdadas de meu avô, que orgulhava de ser o único comandante de tão excêntrico exército. Ou, com mais requintes ainda, uma mulher conhecida nossa, que morava aqui nesta casa e que depois de passar mais de vinte anos esperando pelo seu marido, que andava de cidade em cidade colecionando amantes e águas-marinhas, o envolveu em suas tranças. E entre gemidos, que se misturavam ao prazer, cortou com uma navalha o seu pescoço; ele, que apaixonadamente dizia: eu quero me envelhecer em seus braços - matando-se tempos depois - após escrever por todo o quarto, frases das quais já não me lembro.
E é nesta mulher e neste homem, que o padre, desobedecendo ordens do bispo, não deixou que fossem enterrados no cemitério pelo profano ato que praticaram e cuja história nesta região é conhecida por todos, não sendo também nenhum segredo que são os meus pais e que ainda hoje, em certas noites, se amam às escondidas entre juras de um velho desejo e vinhos que melam os seus corpos, que eu estou pensando neste início de amanhecer. Enquanto fumo mais um cigarro e rodando entre os meus dedos esta chave, ouço os ventos que estremecem as janelas, assoviando aos meus ouvidos antigas canções de ninar."

Trecho do romance "A Dança dos Cabelos", de Carlos Herculano Lopes

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

The Great Gatsby

“I’m Gatsby,” he said suddenly.

“What!” I exclaimed. “Oh, I beg your pardon.”

“I thought you knew, old sport. I’m afraid I’m not a very good host.”

He smiled understandingly—much more than understandingly. It was one of those rare smiles with a quality of eternal reassurance in it, that you may come across four or five times in life. It faced—or seemed to face—the whole external world for an instant, and then concentrated on you with an irresistible prejudice in your favor. It understood you just so far as you wanted to be understood, believed in you as you would like to believe in yourself, and assured you that it had precisely the impression of you that, at your best, you hoped to convey. Precisely at that point it vanished—and I was looking at an elegant young rough-neck, a year or two over thirty, whose elaborate formality of speech just missed being absurd. Some time before he introduced himself I’d got a strong impression that he was picking his words with care.

The Great Gatsby, 1925

Delicado

Eusebiozinho criou-se agarrado às saias da mãe, das irmãs, das tias, das vizinhas. Desde criança, só gostava de companhias femininas. Qualquer homem infundia-lhe terror. De resto, a mãe e as irmãs o segregavam dos outros meninos. Recomendavam: "Brinca só com meninas, ouviu? Menino diz nomes feios!". O fato é que, num lar que era uma bastilha de mulheres, ele atingiu os dezesseis anos sem ter jamais proferido um nome feio, ou tentado um cigarro. Não se podia desejar maior doçura de modos, idéias, sentimentos. Era adorado em casa, inclusive pelas criadas. As irmãs não se casavam, porque deveres matrimoniais viriam afastá-las do rapaz. E tudo continuaria assim, no melhor dos mundos se, de repente, não acontecesse um imprevisto. Um tio do rapaz vem visitar a família e pergunta:

— Você tem namorada?
— Não.
— Nem teve?
— Nem tive.

Foi o bastante. O velho quase pôs a casa abaixo. Assombrou aquelas mulheres transidas com os vaticínios mais funestos: "Vocês estão querendo ver a caveira do rapaz?". Virou-se para d. Flávia:

— Isso é um crime, ouviu?, é um crime o que vocês estão fazendo com esse rapaz! Vem cá, Eusébio, vem cá! Implacável, submeteu o sobrinho a uma exibição. Apontava:

— Isso é jeito de homem, é? Esse rapaz tem que casar, rápido!

Quando o tio despediu-se, o pânico estava espalhado na família. Mãe e filhas se entreolharam: "É mesmo, é mesmo! Nós temos sido muito egoístas! Nós não pensamos no Eusebiozinho!". Quanto ao rapaz, tremia num canto. Ressentido ainda com a franqueza bestial do tio, bufou:

— Está muito bem assim!

A verdade é que já o apavorava a perspectiva de qualquer mudança numa vida tão doce. Mas a mãe chorou, replicou: "Não, meu filho. Seu tio tem razão. Você precisa casar, sim". Atônito, Eusebiozinho olha em torno. Mas não encontrou apoio. Então, espavorido, ele pergunta:

— Casar pra quê? Por quê? E vocês? — Interpela as irmãs: — Por que vocês não se casaram?

A resposta foi vaga, insatisfatória:

— Mulher é outra coisa. Diferente.

Trecho do conto "Delicado", de Nelson Rodrigues

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos


O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Fernando Pessoa

Copromancia

"Não obstante minha reação inicial de repugnância, eu observava minhas fezes diariamente. Notei que o formato, a quantidade, a cor e o odor eram variáveis. Certa noite, tentei lembrar as várias formas que minhas fezes adquiriam depois de expelidas, mas não tive sucesso. Levantei, fui ao escritório, mas não consegui fazer desenhos precisos, a estrutura das fezes costuma ser fragmentária e multifacetada. Adquirem seu aspecto quando, devido a contrações rítmicas involuntárias dos músculos dos intestinos, o bolo alimentar passa do intestino delgado para o intestino grosso. Vários outros fatores também influem, como o tipo de alimento ingerido.

No dia seguinte comprei uma Polaroid. Com ela, fotografei diariamente as minhas fezes, usando um filme colorido. No fim de um mês, possuía um arquivo de sessenta e duas fotos -, meus intestinos funcionam no mínimo duas vezes por dia -, que foram colocadas num álbum. Além das fotografias de meus bolos fecais, passei a acrescentar informações sobre coloração. As cores das fotos nunca são precisas. As entradas eram diárias."

Trecho do conto "Copromancia", de Rubem Fonseca

Lúcia McCartney

Cada qual vai para um quarto. Renê sabe que eu não gosto de promiscuidade. Eu vou para o quarto com o paulista. Sento num sofá. Ele também senta. Depois deita a cabeça no meu colo, diz que não está com vontade de fazer nada, “esses caras cismaram que eu hoje tinha que ir com uma garota pra cama, mas vamos só conversar, está OK?”. Eu digo que está OK. Ele diz que não quer estragar as coisas. Eu digo que está bem. (Quero ir para o Zum Zum.) Passo a mão nos cabelos dele. “Eu não quero fazer isso”, diz ele, tirando a roupa. Eu também tiro a roupa e nos deitamos, ele sempre dizendo que não quer, mas me papando assim mesmo.

Trecho do conto "Lúcia McCartney", de Rubem Fonseca

O livro de panegíricos

O velho não me chama durante a noite; o Lexotan deve ter funcionado.

Vejo o último jornal da noite. Nada.

Ando pela casa. Entro na biblioteca, mas não leio nenhum livro. Tomo um Lexotan do velho, mas mesmo assim não consigo dormir. Sou duro na queda.

Às sete horas da manhã vou ver o velho. Ele já está acordado. Sigo as instruções. Primeiro lavo os olhos dele com água boricada. Depois tiro o fraldão que está sujo de merda e urina. Limpo o velho com uma esponja, sentindo um nojo muito grande. Visto um pijama nele.

“Vou trazer seu chá com torradas.”

Trecho do conto "O livro de panegíricos", de Rubem Fonseca


A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro

"Augusto, o andarilho, cujo nome verdadeiro é Epifânio, mora num sobrado em cima de uma chapelaria feminina, na rua Sete de Setembro, no centro da cidade, e anda nas ruas o dia inteiro e parte da noite. Acredita que ao caminhar pensa melhor, encontra soluções para os problemas; solvitur ambulando, diz para seus botões.

No tempo em que trabalhava na companhia de águas e esgotos ele pensou em abandonar tudo para viver de escrever. Mas João, um amigo que havia publicado um livro de poesia e outro de contos e estava escrevendo um romance de seiscentas páginas, lhe disse que o verdadeiro escritor não devia viver do que escrevia, era obsceno, não se podia servir à arte e a Mammon ao mesmo tempo, portanto era melhor que Epifânio ganhasse o pão de cada dia na companhia de águas e esgotos, e escrevesse à noite. Seu amigo era casado com uma mulher que sofria dos rins, pai de um filho asmático e hospedeiro de uma sogra débil mental e mesmo assim cumpria suas obrigações para com a literatura. Augusto voltava para casa e não conseguia se livrar dos problemas da companhia de águas e esgotos; uma cidade grande gasta muita água e produz muito excremento. João dizia que havia um ônus a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio dos tolos, agressão dos invejosos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso. E provou que tinha razão morrendo de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar seu romance de seiscentas páginas. Que a viúva jogou no lixo, junto com outros papéis velhos. O fracasso de João não tirou a coragem de Epifânio. Ao ganhar um prêmio numa das muitas loterias da cidade, pediu demissão da companhia de águas e esgotos para dedicar-se ao trabalho de escrever, e adotou o nome de Augusto.

Agora ele é escritor e andarilho. Assim, quando não está escrevendo - ou ensinando as putas a ler -, ele caminha pelas ruas. Dia e noite, anda nas ruas do Rio de Janeiro."

Trecho do conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro", de Rubem Fonseca

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Café

“O café é tão grave, tão exclusivista, tão definitivo
que não admite acompanhamento sólido. Mas eu o driblo,
saboreando, junto com ele, o cheiro das
torradas-na-manteiga que alguém pediu na mesa próxima"
Mário Quintana

Chocolates

Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.

Fernando Pessoa

Do contra


Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

Mário Quintana

Le Cardinal de Richelieu

"(...) M. le cardinal est là qui ne me laisse pas un instant de repos, qui me parle de l'Espagne, qui me parle de l'Autriche, qui me parle de l'Angleterre ! Ah ! à propos de M. le cardinal, monsieur de Tréville, je suis mécontent de vous.
M. de Tréville attendait le roi à cette chute. Il connaissait le roi de longue main ; il avait compris que toutes ses plaintes n'étaient qu'une préface, une espèce d'excitation pour s'encourager lui-même, et que c'était où il était arrivé enfin qu'il en voulait venir.
- Et en quoi ai-je été assez malheureux pour déplaire à Votre Majesté ? demanda M. de Tréville en feignant le plus profond étonnement.
- Est-ce ainsi que vous faites votre charge, monsieur ? continua le roi sans répondre directement à la question de M. de Tréville ; est-ce pour cela que je vous ai nommé capitaine de mes mousquetaires, que ceux-ci assassinent un homme, émeuvent tout un quartier et veulent brûler Paris sans que vous en disiez un mot ? Mais au reste, continua le roi, sans doute que je me hâte de vous accuser, sans doute que les perturbateurs sont en prison et que vous venez m'annoncer que justice est faite.
- Sire, répondit tranquillement M. de Tréville, je viens vous la demander au contraire.
- Et contre qui ? s'écria le roi.
- Contre les calomniateurs, dit M. de Tréville.
- Ah ! voilà qui est nouveau, reprit le roi. N'allez-vous pas me dire que vos trois mousquetaires damnés, Athos, Porthos et Aramis, et votre cadet de Béarn ne se sont pas jetés comme des furieux sur le pauvre Bernajoux et ne l'ont pas maltraité de telle façon qu'il est probable qu'il est en train de trépasser à cette heure ! N'allez-vous pas dire qu'ensuite ils n'ont pas fait le siège de l'hôtel du duc de La Trémouille, et qu'ils n'ont point voulu le brûler ! ce qui n'aurait peut-être pas été un très grand malheur en temps de guerre, vu que c'est un nid de huguenots ; mais ce qui, en temps de paix, est un fâcheux exemple. Dites, n'allez-vous pas nier tout cela ?
- Et qui vous a fait ce beau récit, sire ? demanda tranquillement M. de Tréville.
- Qui m'a fait ce beau récit, monsieur ! et qui voulez-vous que ce soit, si ce n'est celui qui veille quand moi je dors, qui travaille quand je m'amuse, qui mène tout au-dedans et au-dehors du royaume, en France comme en Europe ?
- Sa Majesté veut parler de Dieu, sans doute, dit M. de Tréville, car je ne connais que Dieu qui soit si fort au-dessus de Sa Majesté.
- Non, monsieur ; je veux parler du soutien de l'Etat, de mon seul serviteur, de mon seul ami, de M. le cardinal."

Alexandre Dumas. Les trois mousquetaires (1844)

Bufo & Spallanzani


Guedes passou a tarde na Biblioteca Nacional lendo edições de O Globo e do Jornal do Brasil.

Mais tarde estava novamente batendo à minha porta, vestido com o seu blusão ensebado.

Fui logo dizendo, “seu Guedes, estou muito ocupado escrevendo um livro, Bufo & Spallanzani, acho que lhe falei sobre isso, e vou viajar, tenho que tomar algumas providências antes...”

“É coisa muito rápida”, disse o tira, “é sobre dona Delfina, aquela senhora da sociedade que apareceu morta dentro do carro.”

Abri novamente a porta para ele entrar. Fomos para a biblioteca.

“Ela foi assassinada”, disse Guedes.

“Assassinada? Mas ainda ontem o senhor me disse que ela havia se matado.”

“Engano nosso. Foi assassinada.”

“Já prenderam o criminoso?”

“Ainda não.”

“Sabem quem foi?”

Guedes ficou calado. Passou o dedo na testa, de ponta a ponta, e limpou no blusão.

“Afinal o que o senhor quer de mim? Já lhe disse que estou muito ocupado.”

“Não creio que a curiosidade seja uma coisa maligna num policial. É o nosso trabalho.” Estava se referindo à nossa conversa do dia anterior.

“Talvez o trabalho policial seja maligno”, eu disse.

“É possível”, disse o tira, “mas alguém tem que fazê-lo.”

“E afinal?”

“Bem”, ele disse, limpando a testa novamente, “suspeito que dona Delfina tinha um amante. Como o senhor anda nesse meio talvez tivesse ouvido alguma coisa.”

“Um amante? Absurdo. Dona Delfina era uma senhora de moral inatacável.”

“O senhor disse num dos seus livros que a fidelidade é um conceito burguês e que a honra de uma mulher nada tem a ver com o seu comportamento sexual.”

“Em que livro eu disse isso?”

“Em Os amantes.”

“O senhor leu Os amantes?”

“Estou lendo.”

“Vou lhe dizer uma coisa: o ponto de vista, a opinião, as crenças, as presunções, os valores, as inclinações, as obsessões, as concepções et cetera dos personagens, mesmo os principais, mesmo na primeira pessoa, como é o caso de Os amantes, não são necessariamente os mesmos do autor. Muitas vezes o autor pensa exatamente o oposto do seu personagem.”

“Gustavo Flávio é o seu verdadeiro nome?”

O que saberia ele do meu passado? O meu trabalho na Panamericana de Seguros? O meu internamento e fuga do Manicômio Judiciário? Olhei bem o seu rosto magro, os olhos amarelos; o que saberia ele?

Trecho do romance "Bufo & Spallanzani", de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras


O Cobrador

"NA PORTA da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.
Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muito. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.
Só rindo. Esses caras são engraçados.
Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente.
Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso.
São quatrocentos cruzeiros.
Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.
Não tem não o quê?
Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.
Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Ar­rebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.
Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!"

Trecho do conto "O Cobrador", de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras

Confidência do itabirano


Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Casamento


Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado

domingo, 14 de outubro de 2007

O Cheiro do Ralo

Selton Mello está realmente muito bom nesse filme perturbador dirigido por Heitor Dhalia [2007]. É a história de Lourenço, dono de uma loja que compra objetos usados, que sente um prazer doentio em explorar as pessoas no momento em que elas mais necessitam de dinheiro. Aos poucos a loucura toma conta do personagem, e vamos acompanhando esse processo, entrecortado pela freqüente preocupação de Lourenço com o fedorento cheiro do ralo de sua loja. Ele tinha medo que os clientes achassem que o cheiro vinha dele. Vale a pena conferir.

sábado, 13 de outubro de 2007

Roberto Freire

"Eu sou terapeuta e posso dizer que 80% dos meus clientes têm problemas psicológicos por não estarem fazendo o que gostariam de fazer. As pessoas fazem, convencidas pelas suas famílias, o que o meio social prefere; isto de fazer o que é imposto provoca nessas pessoas um grande sofrimento, que muitas vezes estoura fora do trabalho, estoura em sexo, em agressividade, em equilíbrio mental. Observando estes casos você vai ver como a forma de vida dessas pessoas é imprópria para elas. Numa sociedade como a nossa, com esta família autoritária e cumpridora das normas do Estado, as pessoas sensíveis, cujo projeto de vida não está dentro do que espera o meio social, sofrerão muita repressão; e esta é uma repressão muito danosa, pois é castrativa. Uma pessoa que não faz o que precisa fazer, tende a adoecer, perde, no mínimo, a identidade e o auto-respeito". Roberto Freire, "Sem tesão não há solução", 1990.

"The most important kind of freedom is to be what you really are. You trade in your reality for a role. You trade in your sense for an act. You give up your ability to feel, and in exchange, put on a mask. There can't be any large-scale revolution until there's a personal revolution, on an individual level. It's got to happen inside first."
Jim Morrison [1943-1971]


sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Borges


"...Mas eu sempre soube que, a longo prazo, tudo isso se converteria em palavras - sobretudo as coisas ruins, já que a felicidade não precisa de transformações. A felicidade é seu próprio fim." Jorge Luiz Borges [1899-1986]

Germinal

"Dehors, la nuit était tombée, et la lune, derrière des nuages, éclairait la terre d'une clarté louche. Au lieu de retraverser les jardins, la Maheude fit le tour, désolée, n'osant rentrer chez elle. Mais, le long des façades mortes, toutes les portes sentaient la famine et sonnaient le creux. A quoi bon frapper? c'était misère et compagnie. Depuis des semaines qu'on ne mangeait plus, l'odeur de l'oignon elle-même était partie, cette odeur forte qui annonçait le coron de loin, dans la campagne; maintenant, il n'avait que l'odeur des vieux caveaux, l'humidité des trous où rien ne vit. Les bruits vagues se mouraient, des larmes étouffées, des jurons perdus; et, dans le silence qui s'alourdissait peu à peu, on entendait venir le sommeil de la faim, l'écrasement des corps jetés en travers des lits, sous les cauchemars des ventres vides." Émile Zola, 1885.

El amor en los tiempos del cólera

"Por pura experiencia, aunque sin fundamento científico, el doctor Juvenal Urbino sabía que la mayoría de las enfermedades mortales tenían un olor propio, pero ninguno era tan específico como el de la vejez. Lo percibía en los cadáveres abiertos en la mesa de disección, lo reconocía hasta en los pacientes que mejor disimulaban la edad, y en el sudor de su propia ropa y en la respiración inerme de su esposa dormida. De no ser lo que era en esencia, un cristiano a la antigua, tal vez hubiera estado de acuerdo con Jeremiah de Saint-Amour en que la vejez era un estado indecente que debía impedirse a tiempo (...).
A los ochenta y un años tenía bastante lucidez para darse cuenta de que estava prendido a este mundo por unas hilachas tenues que podían romperse sin dolor con un simple cambio de posición durante el sueño, y si hacía lo posible para mantenerlas era por el terror de no encontrar a Dios en la oscuridad de la muerte". Gabriel García Márquez, 1985.

Teacher Man

"Se eu soubesse alguma coisa sobre Sigmund Freud e psicanálise, poderia procurar a origem de todos os meus problemas na minha infância infeliz, na Irlanda. Essa infância infeliz privou-me da auto-estima, provocou espasmos de autopiedade, paralisou minhas emoções, deixou-me irritadiço, invejoso e sem respeito pela autoridade, atrasou meu desenvolvimento, complicou minha interação com o sexo oposto, impediu-me de me erguer no mundo e deixou-me quase inapto para a sociedade humana. A maneira como vim a me tornar professor e como continuei a ser professor representa um milagre e tenho de atribuir a mim mesmo a nota máxima por ter sobrevivido a todos esses anos em salas de aula de Nova York. Deveria haver uma medalha para pessoas que sobrevivem a uma infância infeliz e se tornam professores, e eu seria o primeiro da fila para receber a medalha...". Frank Mc Court, 2005.

A Conquista da América

"Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais, já o vemos subdividir-se em categorias e direções múltiplas, infinitas. Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim." Tzvetan Todorov, 1982.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Henry and June


“To Henry: Please understand Henry, that I’m in full rebellion against my own mind, that when I live, I live by impulse, by emotion, by white heat. June understood that. My mind didn’t exist when we walked insanely through Paris, oblivious to people, to time, to place, to others. It didn’t exist when I first read Dostoevsky in my hotel room and laughed and cried together and couldn’t sleep, and didn’t know where I was. But afterwards, understand me, I make the tremendous effort to rise again, not to wallow any more, not to go on just suffering or burning. Why should I make such an effort? Because I have a fear of being like June exactly. I have a feeling against complete chaos. I want to be able to live with June in utter madness, but I also want to be able to understand afterwards, to grasp what I’ve lived through.” [1932].

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Agatha Christie

Il fait froid aujourd’hui. Mes pieds sont gelés. Je ne sais pas comment expliquer ce temps. C’est la folie du temps, peut-être. Quant à moi, je suis heureux. J’aime bien le froid, surtout quand le ciel est sombre et quand il ne pleut pas. Je me rappele quand je montais le mur d’une maison où j’habitais, pour voir les tempêtes se former. Les gros nuages gris. Le vent fort qui soufflait. Les oiseaux en fuite. C’était le vrai plaisir. Je me sentais vivant là-haut. La pluie c’est bien quand on peut rester à la maison. Je me souviens d’un jour formidable de ma vie quand je finissais la lecture d’un livre d’Agatha Christie. C’était Murder on the Orient Express, et pendant que je le lisais il tombait un orage dehors. Dans le livre, c’était la neige qui tombait, pendant que Poirot donnait les dernières explications sur l’assassinat de Ratchett. Ç’a été un moment magique. J’était encore un adolescent, et le plus grand plaisir de ma vie c’était la lecture de romans policiers. Je remercie beaucoup à Stella Carr, une auteur de livres pour la jeunesse, qui m’a introduit dans ce monde merveilleux des histoires de détectives. Ensuite, je remercie à Marcos Rey, à mon avis, le grand maître de l’aventure urbaine et des histoires d’investigation dans la littérature pour les adolescents au Brésil. Mais l’auteur qui m’a séduit le plus ç’a été l’anglaise Agatha Christie. Avec elle j’ai découvert l’émotion de pénétrer vraiment dans un monde mystérieux, où tout le monde peut être un assassin. Ce qui est le plus intéressant c’est que la mort dans ses livres n’est pas une chose triste. C’est simplement ce que le lecteur attend avec impatience et qui doit être solucionée à la fin du livre. J’ai lu presque toutes les histoires d’Agatha Christie et j’espère pouvoir lire celles que je n’ai pas encore lues, autant que celles que je ne me rapelle plus la fin.
Belo Horizonte, le 06 octobre, 1999.


American Beauty

I really loved American Beauty. Kevin Spacey’s acting is great. Actually, all the movie is great. It’s good for us, poor latinos, to see the "americans" admiting their own misery. And that’s what happened when I was there, seeing an american family being destroyed by hate and foolishness. I have to admit, it made me think about my own family. I don’t want to have an ordinary life, with a normal family. I don’t want to build up a prison around me. I want to be free. So, I can’t keep forcing Maisa to do what she doesn’t want to do. I can’t force her to go to my relatives houses and to pretend to be happy instead of being what she really is: a very simple woman who hates being among that kind of people. She’s not used to go to family parties or meetings like me and I’m not going to force her to this anymore. But she has to give me something too, some freedom, some place to live without anyone, some time to be alone, by myself.
Belo Horizonte, March, 2000.