quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Bufo & Spallanzani


Guedes passou a tarde na Biblioteca Nacional lendo edições de O Globo e do Jornal do Brasil.

Mais tarde estava novamente batendo à minha porta, vestido com o seu blusão ensebado.

Fui logo dizendo, “seu Guedes, estou muito ocupado escrevendo um livro, Bufo & Spallanzani, acho que lhe falei sobre isso, e vou viajar, tenho que tomar algumas providências antes...”

“É coisa muito rápida”, disse o tira, “é sobre dona Delfina, aquela senhora da sociedade que apareceu morta dentro do carro.”

Abri novamente a porta para ele entrar. Fomos para a biblioteca.

“Ela foi assassinada”, disse Guedes.

“Assassinada? Mas ainda ontem o senhor me disse que ela havia se matado.”

“Engano nosso. Foi assassinada.”

“Já prenderam o criminoso?”

“Ainda não.”

“Sabem quem foi?”

Guedes ficou calado. Passou o dedo na testa, de ponta a ponta, e limpou no blusão.

“Afinal o que o senhor quer de mim? Já lhe disse que estou muito ocupado.”

“Não creio que a curiosidade seja uma coisa maligna num policial. É o nosso trabalho.” Estava se referindo à nossa conversa do dia anterior.

“Talvez o trabalho policial seja maligno”, eu disse.

“É possível”, disse o tira, “mas alguém tem que fazê-lo.”

“E afinal?”

“Bem”, ele disse, limpando a testa novamente, “suspeito que dona Delfina tinha um amante. Como o senhor anda nesse meio talvez tivesse ouvido alguma coisa.”

“Um amante? Absurdo. Dona Delfina era uma senhora de moral inatacável.”

“O senhor disse num dos seus livros que a fidelidade é um conceito burguês e que a honra de uma mulher nada tem a ver com o seu comportamento sexual.”

“Em que livro eu disse isso?”

“Em Os amantes.”

“O senhor leu Os amantes?”

“Estou lendo.”

“Vou lhe dizer uma coisa: o ponto de vista, a opinião, as crenças, as presunções, os valores, as inclinações, as obsessões, as concepções et cetera dos personagens, mesmo os principais, mesmo na primeira pessoa, como é o caso de Os amantes, não são necessariamente os mesmos do autor. Muitas vezes o autor pensa exatamente o oposto do seu personagem.”

“Gustavo Flávio é o seu verdadeiro nome?”

O que saberia ele do meu passado? O meu trabalho na Panamericana de Seguros? O meu internamento e fuga do Manicômio Judiciário? Olhei bem o seu rosto magro, os olhos amarelos; o que saberia ele?

Trecho do romance "Bufo & Spallanzani", de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras


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