Guedes passou a tarde na Biblioteca Nacional lendo edições de O Globo e do Jornal do Brasil.
Mais tarde estava novamente batendo à minha porta, vestido com o seu blusão ensebado.
Fui logo dizendo, “seu Guedes, estou muito ocupado escrevendo um livro, Bufo & Spallanzani, acho que lhe falei sobre isso, e vou viajar, tenho que tomar algumas providências antes...”
“É coisa muito rápida”, disse o tira, “é sobre dona Delfina, aquela senhora da sociedade que apareceu morta dentro do carro.”
Abri novamente a porta para ele entrar. Fomos para a biblioteca.
“Ela foi assassinada”, disse Guedes.
“Assassinada? Mas ainda ontem o senhor me disse que ela havia se matado.”
“Engano nosso. Foi assassinada.”
“Já prenderam o criminoso?”
“Ainda não.”
“Sabem quem foi?”
Guedes ficou calado. Passou o dedo na testa, de ponta a ponta, e limpou no blusão.
“Afinal o que o senhor quer de mim? Já lhe disse que estou muito ocupado.”
“Não creio que a curiosidade seja uma coisa maligna num policial. É o nosso trabalho.” Estava se referindo à nossa conversa do dia anterior.
“Talvez o trabalho policial seja maligno”, eu disse.
“É possível”, disse o tira, “mas alguém tem que fazê-lo.”
“E afinal?”
“Bem”, ele disse, limpando a testa novamente, “suspeito que dona Delfina tinha um amante. Como o senhor anda nesse meio talvez tivesse ouvido alguma coisa.”
“Um amante? Absurdo. Dona Delfina era uma senhora de moral inatacável.”
“O senhor disse num dos seus livros que a fidelidade é um conceito burguês e que a honra de uma mulher nada tem a ver com o seu comportamento sexual.”
“Em que livro eu disse isso?”
“Em Os amantes.”
“O senhor leu Os amantes?”
“Estou lendo.”
“Vou lhe dizer uma coisa: o ponto de vista, a opinião, as crenças, as presunções, os valores, as inclinações, as obsessões, as concepções et cetera dos personagens, mesmo os principais, mesmo na primeira pessoa, como é o caso de Os amantes, não são necessariamente os mesmos do autor. Muitas vezes o autor pensa exatamente o oposto do seu personagem.”
“Gustavo Flávio é o seu verdadeiro nome?”
O que saberia ele do meu passado? O meu trabalho na Panamericana de Seguros? O meu internamento e fuga do Manicômio Judiciário? Olhei bem o seu rosto magro, os olhos amarelos; o que saberia ele?
Trecho do romance "Bufo & Spallanzani", de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras
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