domingo, 16 de dezembro de 2007

Passeio Socrático

Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população nos submete ao consumo de símbolos.

O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. [...]

Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. [...]

Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.

Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. [...]

Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático, respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: “Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.”

Frei Beto

Um comentário:

Anônimo disse...

Flávio
Não poderia deixar de comentar esse post. O senhor CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO( Frei Betto) é um cara excepcional. É um em um milhão. Gostaria em algum momento conversar com ele... Adepto da teologia da libertação - da qual tenho grande admiração, capaz de tirar a Igreja Católica e sua imutável hierarquia do seu sono dogmático e confrontá-los com a realidade, realidade do povo de Deus que tem fome: de pão, de justiça - ele é um homem que acima de tudo sabe que os homens precisam e escreve cada palavra no seu devido momento... É sempre um prazer ler os textos que ele escreve... Quanto a alusão a sócrates, hoje andando pelo Shopping Del Rey em Belo Horizonte, onde fui passear com a família, desfrutar um pouco das maravilhas capitalistas, observava algo parecido. Nas lojas de brinquedos onde avolumavam-se pessoas e crianças todas bem vestidas, alimentadas e "felizes", carregando enormes sacolas com parafernálias eletrônicas que provavelmente não durarão mais do que uma semana e, logo servirão para aumentar todo aquele lixo que levará séculos para ser degradado pelo ambiente e ser reintegrado à terra, era uma visão paradisíaca, tudo muito perfeito, tudo muito bom, o mundo realmente é tudo de bom. Porém, ao sair do shopping, a apenas alguns metros deparei-me com uma família maltrapilha, esquálida (para não dizer faminta) e "triste", vagando sem destino. Então disse aos meus filhos, que também vislumbravam aquela cena: Acabamos de sair do paraíso e caímos no limbo, só que esse limbo não é a morada do demônio, ele não fez nada para criá-lo; os homens o criaram, eu e outros homens... E não pude deixar de pensar, se eu estava ali, ao lado de Beatriz - no paraíso Dantesco - alguém deveria estar ocupando o meu lugar no limbo...

Joandre