Relato de Júlio Lerner:
De minha sala na redação de "Panorama" até o saguão dos estúdios tenho de percorrer cerca de
Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a um seu semelhante... Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para lhe explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli (ela não sabe que eu sei, sua melhor amiga), entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados, Clarice me olha, o setor técnico envia pelos alto-falantes o agudo sinal de mil ciclos, o olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, e fica encolhida e calada, o calor está ficando insuportável e o ar condicionado não funciona, está quebrado, chega o aviso que em um minuto o VT já estará ajustado, são quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do Terceiro Mundo que me possibilita estar agora frente a frente a ela, Clarice me olha, medrosa, assustada e seu olhar me pede para que eu a tranqüilize...
-"Ok, Juliooooo... tudo pronto", a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda a equipe para sair, cabo-man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço, Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás, peço silêncio total e depois de uns dez segundos ecoa um "gravandooooo"...
Silêncio.
Olga e Miriam na parte escura de um dos lados, Moacir escondido atrás da câmera, eu que me posiciono ao lado da câmera para não aparecer, a fim de que o público não descubra minha impiedosa cara-de-pau e ... Clarice. Solitária, no centro do estúdio... Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos... Estou completamente desconcentrado, fico um longo minuto em silêncio fitando Clarice, estou oco, vazio, não sei o que dizer... Clarice me olha, curiosa mas vigilante, defendida... Sou o senhor do castelo e - prepotente - guardo comigo a chave desta prisão... Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade.
Não sabes, Clarice... Te conheci agora, porém te conheço há muito tempo... Te amo, te respeito e no entanto agora começo a te invadir. A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos tiranos. Começa a entrevista [...]
A entrevista avança. Seus olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Quero mergulhar, por vezes consigo... Clarice agora está encapotada, ela se deixa agarrar mas logo escapa e volta, e me pega, e me sugere o longe e o não-dizível, depois se cala... E quando nada mais espero, ela volta a falar... Faço uma anti-entrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.
Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: "Chega!". Clarice pressente que por trás de meu sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico autodenominado "repórter" e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e partir.
Avanço, invado, penetro, novamente invado e estrategicamente recuo, mais uma vez penetro. E minha tola vaidade de macho sopra ao pé do ouvido para que eu vá em frente, prossiga.
Estou dividido mas prossigo, mandam um sinal que tenho só cinco minutos... Agora quatro... Três... Sou oportunista descarado... Faltam dezessete para as cinco... Sinto que não a verei nunca mais, estou emocionado, mais duas ou três perguntas e a entrevista se encerra com Clarice dizendo: "... bom, agora eu morri... Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto estou morta. Estou falando do meu túmulo..."
Silêncio pesado no estúdio B. Um longo, e triste, e terrível silêncio.
A premonição.
Está encerrada a entrevista.
Clarice se levanta, nada digo, ajudo-a a tirar o microfone de lapela.
Silêncio milenar no estúdio.
Miriam, a estagiária, chora baixinho, Olga está calada, Clarice e eu nos olhamos no fundo dos olhos...
Trechos da entrevista:
- A sua produção ocorre com freqüência?
- Tenho períodos de produzir intensamente e, tem períodos hiatos, em que a vida fica intolerável...
- Esses hiatos são longos?
- Depende. Podem ser longos, e eu vegeto nesses períodos, ou então, para me salvar, eu me lanço logo numa outra coisa, como por exemplo, acabei a novela, estou meio oca, então estou fazendo uma história para criança.
- É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?
- Quando eu me comunico com criança é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade eu estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma. Aí é difícil.
[...]
- Se você não pudesse mais escrever, você morreria?
- Eu acho que quando eu não escrevo eu estou morta.
- Esse período...
- É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, [mas] é necessário, para haver um esvaziamento da cabeça, para poder nascer alguma outra coisa..., se nascer...É tudo tão incerto.
[...]
- Eu escrevo sem esperança que o que eu escrevo altere alguma coisa.
- Então, porque continuar escrevendo, Clarice?
- E eu sei?... [Clarice ascende um cigarro] Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas, a gente está querendo é desabrochar, de um modo ou de outro.
[...]
- Fui ler aos 13 anos Hermann Hesse, O Lobo da Estepe, e tomei um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando, jogando fora.
- Isso acontece ainda agora, de você produzir alguma coisa e rasgar?
- [...] eu rasgo sim.
- É produto de reflexão, ou uma emoção...?
- Raiva, um pouco de raiva.
- Com quem?
- Comigo mesma.
- Porque, Clarice?
- Sei lá, estou meio cansada...
- Do quê?
- De mim mesma.
- Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?
- Bom, agora eu morri. Vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.
Clarice Lispector [1925-1977]