sábado, 10 de dezembro de 2011

Antes do fim

Setenta anos de idade
sozinho em casa num dia frio e escuro
sentado na privada ele começou a puxar os pêlos do peito e do saco
a puxar e arrancar os pêlos com raiva
uma raiva que explodiu de repente, assim, sem mais
enquanto o cheiro das fezes se espalhava pelo ar, de dentro para fora
um cheiro de repolho podre, de carne podre
e os pêlos caíam na água, no chão, na borda da privada
e ele continuava puxando e arrancando com ferocidade –

arrancando –

Até que um pequeno vaso de sangue arrebentou
próximo à virilha
– um vasinho de nada, roxo
que parecia estar preso ao pêlo que ele arrancou do saco murcho e comprido
– uma artéria pequena, mas que sangrou
e o sangue começou a escorrer, a pingar
a pingar sem parar na água marrom
que ficou mais escura na parte onde pingava
mais escura de um vermelho vivo de sangue ruim
de sangue azedo –

pingando –

E enquanto pingava ele puxava com mais fúria os pêlos
e olhava as unhas dos pés nos chinelos pretos, que ele só usava em casa
– chinelos baratos, um deles rachado na frente, sujo
e uma das unhas encravada, trincada, de um marrom pardo escuro
que doía todos os dias dentro do seu sapato caro de ir ao centro
de ir cobrar as dívidas
de ir maquinar
e fofocar como ninguém
e matraquear:
‘Como sou bom, como sou honrado, como sou competente
veja como tenho razão
eu só quero o bem, só quero o que é certo: isso é certo, aquilo é errado
e olha o meu filho, que beleza
ele fala inglês e é o melhor executivo da empresa
foi o melhor aluno da universidade’ –

o melhor –

E o sangue escorrendo pelo saco murcho, comprido e velho
– os pêlos no chão, na água
pêlos pretos e brancos
– quase todos brancos
contrastando com o cabelo pintado
que o fazia sorrir de orgulho e estufar o peito na frente do espelho
antes de se enfiar no terno e sair para cobrar e fofocar
matraquear e maquinar

E saía de peito erguido pelas ruas
com sua honra e respeitabilidade de chefe de família bem casado e feliz
– tudo certo, do jeito que tinha que ser:
‘Lá em casa é assim, comigo é desse jeito’
– uma felicidade embrulhada em papel de seda e fitas de ouro
o dia seguindo o seu curso, tudo planejado desde o início

E enquanto o sangue pingava sem parar
ele pensava no jogo que terminava:
rei, peão, rainha, cavalo, torre e bispo deitados na mesma caixa
na mesma caixa de madeira escura
E a tampa, ah a tampa...

O fim do jogo se aproximava
e só naquele momento, sentado na privada
arrancando os pêlos do peito e do saco
ele se deu conta disso

Continuar para quê?

Onde estava o garotinho que brincava no quintal de casa
cheio de alegria e prazer
vivendo o instante?

Estava no topo, no ápice, aposentado
– mas na ativa, maquinando, maquinando
rico
muito rico
filhos brilhantes
um casamento respeitável
respeitabilíssimo
com uma fachada construída em pedra maciça impenetrável
por onde não passava nem a luz do sol numa manhã quente de verão:
e a vida era como se o sol não brilhasse
mas respeitável e próspera
de dar inveja
– era isso que importava

Mas o jogo terminava e ele sentia o seu fim
foi um choque
um tremor súbito que o fez soltar o último tufo de pentelhos no chão
e esfregar a mão trêmula no peito quase despelado e no saco quase nu
– triste (uma tristeza pesada e fria)
e ao erguê-la viu o sangue
ah aquele sangue vermelho e quente, escuro
sangue dele

E de repente uma ânsia de beber o próprio sangue lhe tomou o corpo e o espírito
uma fissura, uma fome de seu próprio corpo, de sua fonte de vida
uma vontade incontrolável de buscar nela vestígios do seu eu perdido
de arrancar as cascas, as máscaras
de enfiar as unhas no peito e vasculhar por dentro até encontrar...
o quê?
onde estava? onde estava?

E sem pensar foi bebendo o sangue
lambendo a mão empapada de vermelho molhado e quente
que voltava ao saco para buscar mais e mais
sangue dele, ácido, com gosto de ferro, de cinza pardo
ferroso

– e mais e mais e mais e mais

E o saco não parava de pingar
e ele bebendo, de olhos fechados
sentindo, sentindo
e de repente o cheiro podre desapareceu
e a criança voltou gritando ‘Nada importa, nada disso importa’
e do fundo de seu túmulo Fernando Pessoa gritou ‘Fazes falta?
Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti’

E ele também gritou
caiu de joelhos
e começou a arrancar os cabelos da cabeça, dos cílios, das sobrancelhas
e sentiu sua doença de pele descamando atrás das orelhas
e arrancou as cascas
as placas de casca branca e seca
e na cabeça descobriu uma ferida que também descamava
e que ele coçou
coçou até sangrar

E o saco pingando no chão
formando uma poça escura no piso branco do banheiro
e sua boca vermelha
vermelha do seu próprio sangue
da sua própria vida quente que pulsava fundo
bem fundo
sem ele saber
perdida por trás das crostas secas
das máscaras duras e frias da respeitabilidade
de tudo que tem que ser, de tudo que é certo

E ele gritou de novo, de joelhos
a boca cuspindo sangue num vômito de libertação
e esfregou no corpo o seu próprio vômito, o seu próprio sangue
e gritou
‘Meus filhos, meus filhos, venham até mim
venham aqui e me escutem
não sou o que vocês pensam
roubei, humilhei, menti, oh como menti:
muitas dessas pessoas que vocês desprezam
só porque eu as culpei de terem me atacado
a mim, o inocente, o bom
– essas pessoas não são culpadas nem inocentes
o que vocês sabem é o que eu disse, o que tem que ser
o que deve ser dito para sustentar a imagem pura e boa do pai
do senhor
do respeitável
do marido fiel e honrado
do profissional brilhante
pai dos filhos brilhantes’

E a poça de sangue crescia logo abaixo do seu saco
e ele de joelhos gritando ‘Perdão, perdão’
as mãos levantadas em súplica
e uma nova ânsia de vômito lhe tomava o estômago em espasmos de dor
os músculos se contraindo, apertando, apertando
– espasmos que expeliram uma água rala, vermelha e fétida
de um fedor ardente e seco

E de repente ele se jogou no chão, deitado, com as mãos no rosto
banhado em sangue, fezes e vômito
imaginando-se na frente do espelho, todo importante
e não havia nada ali
era um espelho vazio
nada
ele não estava ali

E a poça aumentou ainda mais e ele desmaiou
desmaiou de exaustão e dor, quase sem fôlego de tanto gritar
quase sem vida
mas limpo, purificado...
foi salvo pelo vizinho, que o levou a um hospital
onde os filhos e a esposa o encontraram vivo
mas diferente: um outro homem...
preparado para partir

As peças já estavam na caixa...

‘O jogo acabou’

Flávio Marcus da Silva

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