domingo, 16 de agosto de 2009

Rosas marrons

O professor se olhou no espelho e o que viu foi um rosto pálido, desfigurado pelo ódio. Por mais que tentasse afastar o desejo de vingança recorrendo a livros de auto-ajuda e a orações, não conseguia evitar os maus pensamentos, que o assombravam dia e noite com cenas assustadoras de sofrimento e morte.

O culpado de toda a sua desgraça era um empresário de cinqüenta e oito anos, casado com uma advogada tributarista, com quem tinha um único filho, que estudava na capital.

Quinze anos haviam se passado desde que foram apresentados em uma festa, na casa de uma amiga. Naquela época, embora fosse professor recém-formado, estava bem de vida, pois tinha acabado de receber a herança do pai, um rico criador de gado na região. Resolveu, então, atender ao pedido da amiga e emprestar ao empresário uma enorme quantia em dinheiro, para um “investimento infalível” no ramo da telefonia móvel. O negócio não deu certo, a loja fechou as portas e a dívida que o empresário tinha com ele não foi paga.

Mas o empresário prometeu pagar tudo, com juros, se o jovem professor entrasse de sócio com ele em uma empresa de importação, que daria “lucros fabulosos” em menos de dois anos. Como era inexperiente, investiu muito dinheiro na empresa, acreditando nas conversas do empresário e da sua esposa advogada que, em segredo, organizaram e mantiveram em funcionamento durante oito anos um complicado esquema de importações fraudulentas envolvendo notas fiscais falsas e propinas a funcionários da Receita Federal.

Quando o esquema foi descoberto pela Polícia, tudo o que ele possuía havia sido investido na empresa. Seu nome foi publicado em todos os jornais do país e divulgado em programas de rádio e TV em escala nacional. Sua esposa o abandonou, levando com ela o filho de dez anos para viver em Goiânia, onde moravam os pais dela, dois velhos e pobres comerciantes aposentados.

O esquema havia sido planejado de forma que, se fosse descoberto, um excelente bode expiatório estaria pronto para ser apresentado à Justiça: ele. Foi o que aconteceu. As provas que o casal de criminosos havia preparado eram irrefutáveis, e com base nelas seus advogados conseguiram facilmente convencer o juiz de que aquele tímido professor de trinta e sete anos havia sido o único responsável pelos crimes.

Ao sair da prisão, quatro anos depois, numa fria tarde de julho, o amargurado professor descobriu que seu filho tinha se tornado um viciado em crack, com poucas chances de recuperação, e que sua ex-esposa havia falecido após tomar uma overdose de remédios para dormir, seis meses após a morte dos pais em um acidente de carro, na estrada de Caldas Novas.

Continuava olhando seu rosto no espelho, perdido em pensamentos sombrios, quando ouviu o barulho de um avião que cortava o céu, despertando-o do seu torpor. Saiu do banheiro e sentou-se no sofá da sala. Vivia sozinho em um apartamento alugado no centro da cidade, de onde só saía para fazer alguns bicos como desentupidor de pias e lavador de carros. De vez em quando via o empresário e sua esposa desfilando pela rua principal da cidade em carros e caminhonetes que mais pareciam veículos lunares ou tanques de guerra futuristas, de tão grandes, imponentes e sofisticados. Outras vezes via os dois no noticiário da TV local ou nas colunas sociais, recebendo prêmios de honra ao mérito, de reconhecimento profissional, de glamour, ou participando de festas VIPs, sempre muito alinhados e bem vestidos. O filho deles vinha todo final de semana para visitar os pais, curtir com os amigos as noites de sábado numa das melhores danceterias do estado e ficar com as meninas ricas da City, que se orgulhavam de estar na companhia dele - um estudante de Direito com futuro promissor, filho de uma renomada advogada tributarista e de um poderoso e rico empresário do ramo educacional: era assim que costumavam destacar os jornais locais.

Naquele dia, o professor foi mais uma vez à igreja pedir perdão pelo seu ódio e desejo de vingança, mas assim que voltou para casa e se deitou na cama, foi novamente tomado pelos maus pensamentos.

À noite, sonhou que caminhava por uma estrada deserta, cercada de árvores enormes, e que à sua frente seguia uma figura esguia, vestida de negro, carregando um lampião aceso em uma das mãos e uma rosa marrom na outra. Ao chegarem a uma velha casa de madeira, na beira da estrada, a misteriosa figura indicou com um movimento do lampião que eles deveriam entrar. Seus olhares se cruzaram por um instante, mas o professor não soube dizer se era um homem ou uma mulher. Só notou os cabelos curtos e pretos, os olhos escuros e as mãos magras, de gestos delicados. Entraram, e, para sua surpresa, a mesma figura esguia de cabelos curtos e escuros aparecia em vários lugares ao mesmo tempo, como réplicas ou clones de um mesmo fantasma, sempre ao lado de um homem ou de uma mulher. Numa das paredes da enorme sala havia uma foto do rico empresário, de paletó, camisa social e gravata, ao lado de sua bela esposa advogada. Ao redor da foto, como uma moldura, havia um arranjo de aspecto funesto, feito de pregos enferrujados e dezenas de rosas marrons. A misteriosa figura que o acompanhava dirigiu-se lentamente até a foto, espetou a rosa marrom que trazia na moldura, junto com as outras, e chamou-o para junto de si. O professor se posicionou ao seu lado, fechou os olhos e, sem qualquer resistência, deixou-se guiar pelos labirintos sombrios do inconsciente, onde uma seqüência de imagens era projetada repetidamente, numa velocidade assustadora: um carro em alta velocidade, um livro no banco de trás; um rio de águas barrentas; uma carreta desgovernada; sangue e membros mutilados em meio a ferros retorcidos.

Acordou assustado às duas da madrugada e correu para o banheiro, onde vomitou um líquido escuro, de odor nauseabundo. Voltou para o quarto, ligou a televisão num canal evangélico, deitou-se na cama e permaneceu imóvel, sem dormir. Levantou-se às seis da manhã, lavou o rosto e saiu para ir ao bar da esquina comer alguma coisa. Ali, pediu um café bem forte, um pão de queijo com lingüiça, e foi para uma mesa afastada, próximo aos banheiros. Ao sorver o primeiro gole do café, viu que um freguês encostado no balcão encarava-o, espantado. Imediatamente o professor reconheceu-o como uma das pessoas do sonho, que se encontrava de pé na sala da casa de madeira, ao lado de um dos clones da misteriosa figura vestida de negro. O homem pareceu indeciso por alguns segundos, mas logo veio em sua direção, e ao se aproximar, disse: “O filho deles morreu em um acidente de carro ontem à noite, às vinte e três horas, quando voltava para a capital”.

Ao ouvir aquilo, o professor levantou-se num salto e saiu correndo em direção à igreja.

Flávio Marcus da Silva

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