segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

SONHO DE UM HISTORIADOR

 

Quem foi o homem que há mais de duzentos anos seguiu por este caminho, margeando o ribeirão, e entrou nesta casa, carregando um saco de milho ou feijão? Ou talvez levando uma flor, um crucifixo, ou quem sabe um livro?

Numa casa antiga como esta, muita coisa aconteceu, e é bem provável que, em seus primórdios, um homem tenha entrado nela carregando um saco de mantimentos, uma flor, um crucifixo ou um livro. E tenha conversado com as pessoas lá dentro, almoçado ou jantado.

Fico imaginando as pessoas entrando na casa, cumprimentando-se, comendo, sorrindo, chorando, sentindo as roupas apertadas ou largas sobre seus corpos, o gosto da comida, o frescor da água, a quentura e o sabor do café.

Descobrimos num cartório um documento que diz que, no início do século XX, esta casa tinha vários cômodos, instalações sanitárias e de luz elétrica, um local de despejo, uma casa anexa com um moinho de fubá, um rego d’água, açude, um galinheiro coberto de telhas e cercado com tela de arame, e, fazendo parte da propriedade, um pomar em bom estado de conservação, uma jazida de pedra sabão e vinte hectares de terras de vargem e melado.

Hoje, preservada, a casa continua com vários cômodos, mas não sabemos onde era a casa de despejo nem onde ficavam o moinho, o galinheiro, o pomar e a jazida de pedra sabão (ou pedra talco, como era conhecida). A investigação só está começando.

Somos três historiadores e um ilustrador. Vamos escrever um livro ilustrado sobre a história desta casa, suas terras e seus principais moradores.

Sento-me na escada que dá acesso ao salão principal. Vejo uma mulher negra de pé, perto de uma pedra, a pouca distância de onde estou, olhando para mim. Seu cabelo está todo desgrenhado e seu vestido rasgado. Quem é ela? De repente vejo homens a cavalo chegando. A mulher sai correndo e se embrenha na mata. Os homens vão atrás, gritando.

Entro na casa. O piso de madeira antiga faz barulho sob meus pés. Vejo quadros na parede, um sofá azul, com detalhes barrocos, e um jarro com flores vermelhas aveludadas. As janelas são grandes e estão abertas.  

Vou à cozinha, sento-me numa cadeira, perto de um armário, e começo a folhear um livro com ilustrações muito antigas da casa. Ouço barulhos de panelas. Uma mulher prepara o almoço: costelinha de porco, arroz, feijão fradinho, couve e angu. A família chega e se acomoda na grande mesa da cozinha e, enquanto come, conversa sobre o que cada um fez durante o dia. Um rapaz diz que seus camaradas de Pitangui vão esperá-lo amanhã bem cedo na saída do arraial para irem ao Curral Del Rei. Vão comprar iguarias que não são produzidas ali, para vender em toda a região: roupas, vestidos, pólvora, metais, queijos e vinhos portugueses.

Caminho pelo quintal e vejo um rego d’água indo em direção a uma casa pequena praticamente emendada à casa principal. Entro e encontro um moinho de fubá, girando lentamente com a força da água. Um homem negro, manuseando um instrumento parecido com uma pá, coloca o fubá em sacos e junta tudo em um canto. Ele trabalha sem parar.

Acordo do meu sonho e não vejo mais ninguém. O moinho desapareceu. A sala e a cozinha estão vazias. Estou cansado, mas quero ler, pesquisar, escrever, sonhar. Precisamos trabalhar.

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