Ele está em seu quarto, fumando e comendo pedaços de carne de porco com farinha. Sente-se incapaz de se reerguer e se embrenhar de novo nos comércios, nas trocas incansáveis de um mundo que avança e não para. Pensa com indiferença nos lugares de espera e solidão, de dor e quietação: hospitais, clínicas psiquiátricas, asilos, prisões, casas de morrer – a sua e as de muitos outros –, onde o tempo parece seguir ritmos diferentes.
Ele vê a vida como um fluxo intenso de pessoas e coisas que estão lá fora, do outro lado da porta, do jardim, do portão, enquanto ele está dentro, olhando por minúsculas frestas nas janelas.
Está agora deitado de lado em sua cama, com dois travesseiros sob a cabeça e um entre as pernas, respirando ofegante, assustado, tentando se livrar de uma angústia no peito.
Esses três parágrafos foram sua primeira tentativa de escrever algo minimamente literário em dois anos.
Ficaram péssimos, eu sei, mas foram três parágrafos que ele escreveu com ardor, com sangue, saindo e voltando do escritório diversas vezes, abrindo e fechando a geladeira, comendo o resto do marmitex que pediu no almoço, apagando frases inteiras, reescrevendo, desistindo, voltando atrás, dizendo ‘sou capaz, preciso recomeçar.’ Só ele sabe como foi difícil.
Estou no escritório. Ele não está aqui. Está na sala catando guimbas de cigarro e recolhendo o prato onde comeu um miojo com frango desfiado ontem à noite. Come mal, parou de fazer exercícios, está sozinho. Quer voltar a fazer as coisas que ama, que sabe fazer bem, mas não está fácil.
Ele voltou. Vai continuar a escrever.
Lá fora estão os seres viventes, os que fazem o mundo girar.
No hospital...
No hospital ficou trinta e cinco dias internado por causa de uma obstrução intestinal grave, que deu muito trabalho para os médicos e lhe mostrou o quão imprevisível é a vida.
Sonda nasogástrica, jejunostomia, dreno tubular sentinela, gastrostomia, drenagem de abscessos, prisão de ventre, lavagem intestinal, toque retal, diarreia, tonteira, desmaios, trocas de fraldas e muito mais.
Do lado de fora, as horas passavam que nem loucas desvairadas.
‘Coragem, você consegue’, diz para si, e se levanta.
Aos poucos sai do quarto, abre a porta da frente e pisa na grama do jardim.
Sai, como saiu do hospital, mas, por enquanto, não passa atravessa o portão. Amanhã, talvez, dê uma volta no quarteirão. Ou depois de amanhã.
Flávio Marcus da Silva (1975-)
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