Sentei-me para escrever
com a cabeça vazia, sem nenhuma história interessante para contar. Por que essa
ânsia de escrever, de colocar no papel qualquer coisa que eu sinta ou faça?
Terapia, talvez. Escrever é uma necessidade para mim. Se eu não escrevo, não me
tranquilizo, não me refaço para seguir adiante (como é difícil seguir
adiante!). O que eu fiz hoje? Não sei se vai interessar a alguém uma coisa tão
banal, mas quem sabe? Tomei um sorvete com calda de morango e leite condensado
numa sorveteria do centro, minutos após sair do banco, onde recebi um auxílio-doença
referente à minha última cirurgia no abdômen. Que horas eram? Onze da manhã? Um
pouco mais ou menos que isso. O fato é que não eram horas para tomar sorvete,
sem contar que estava chovendo e ventando frio. Não eram horas, não era dia, nem
semana, nem mês, nem ano. Eu não posso me empanturrar de doces enquanto luto
ferrenhamente contra a balança. Ah, essa maldita compulsão alimentar, essa luta
que não tem fim. Como fico livre disso? Toda segunda-feira eu começo uma dieta.
Na terça ou na quarta eu a jogo para o alto comendo um pouco de tudo que
encontro na geladeira. Depois vem a culpa. Antes mesmo de terminar de comer, ela
vem e destrói todo o prazer, toda a alegria de comer e viver.
Estou abafado. Preciso puxar
o ar mais vezes que o normal para me aliviar. Escrever também me alivia, ver as
ideias se concatenando em frases cheias de mim mesmo, do que eu amo ou odeio,
do que me faz bem ou mal. Escrever me dá a sensação de que estou deixando uma
obra, algo mais concreto do que simplesmente trabalhar e ganhar dinheiro para
sustentar os filhos na faculdade, até se formarem e me abandonarem. A obra
literária é para mim um legado. Mesmo que o que eu escreva não seja literatura,
é importante para mim qualquer texto que eu deixar. É uma forma de desobsessão,
de livrar meu ser do que me faz mal, e também de mostrar o que sou, sem medo,
sem autopiedade, me preparando para o fim. Não tenho outra escolha. Escrever,
morrer...
Escrevo também para
ajudar quem possa um dia ler meus textos, se isso acontecer. Não sei como. Os
escritores me ajudam muito. Lembro-me de quando li, no início dos anos 90, “Ame
e dê vexame”, “Sem tesão não há solução”, “Cleo e Daniel” e “Coiote”, de
Roberto Freire. Esses livros me ajudaram a atravessar a crise da adolescência,
a descobrir a importância do prazer de viver, valorizando meu ser original e
único. Funcionaram para mim como textos sagrados sobre como viver a vida e me
relacionar com os outros, sem explorar ninguém. Por um longo tempo me ajudaram,
até que me vi cercado, encurralado e prensado pelas relações de poder
capitalistas. Muitas daquelas ideias anárquicas e libertárias caíram por terra,
mas continuo sonhando com um mundo mais justo, onde as pessoas possam viver
felizes e realizadas, fazendo o que mais gostam.
Hoje ganhei de presente o
livro “L’Atelier Noir”, de Annie Ernaux. Trata-se de um diário da escritora com
anotações importantes sobre a construção dos seus textos literários. Talvez
essa leitura me estimule ainda mais a escrever, me ensine a organizar as ideias
com mais facilidade, a fazer literatura. Não quero ser simplesmente alguém que
escreve. Quero ser escritor, produzir textos literários. Há uma enorme
diferença entre uma pessoa que escreve bem e outra que faz literatura. Já li
vários textos pretensamente literários que definitivamente não são literatura.
É o que mais tem. Literatura não é rebuscamento, floreios e palavrório difícil
de entender. Nem nada correto demais, de fácil compreensão. Pode até ser tudo
isso, mas não só. Literatura corta, fere, mexe, sacode, incomoda, extasia, toca
fundo e investiga a alma humana. Literatura é beleza, na sua essência mais
profunda, verdades talhadas à faca, ideias em movimento... Não sei explicar
direito. Só sei ler e sentir.
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