quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

PENSO NAS ABELHAS

Sonho que estou na cozinha preparando uma vitamina de mamão com aveia e mel.

Sou um homem urbano, casado, com filhos, mas no sonho moro no campo, sozinho, numa casa pequena e agradável, e passo grande parte do meu tempo cuidando de abelhas, que produzem o mel que eu vendo na cidade e doo a um centro de desintoxicação para dependentes químicos que fica perto da minha propriedade.

Vejo-me trabalhando nas colmeias, tirando e colocando quadros repletos de favos, verificando a produção.

Num flash, o cenário muda e estou conversando com um senhor idoso, que, ao que parece, dirige o centro de desintoxicação. Vejo alguns dos abrigados circulando pelo pátio, conversando, fumando, alguns altivos e gritadores, outros cabisbaixos e silenciosos, só ouvindo. Uma turma está no campo, cuidando da horta, das vacas e cabras. Eles produzem queijo, que vendem por um bom preço nos mercados da região.

Vejo agora queijos maturando numa sala climatizada e com azulejos brancos nas paredes, muito limpa. Um rapaz está lá dentro, observando a produção e tomando notas numa caderneta.

De repente estou de novo conversando com o velho, que me diz frases soltas, como “eles andam descalços na horta e no curral”, “o caminho que leva à cachoeira é muito estreito”, “à noite sirvo chá com bolachas”, “gosto de colocar mel na vitamina que faço no meio da tarde”.

E assim estou de volta à cozinha da minha casa, preparando uma vitamina de mamão com aveia e mel. Não consigo sair dali. Preparo a bebida várias vezes, enquanto cenas e imagens nebulosas se formam na minha cabeça.

Com o som do liquidificador ao fundo, vejo-me deitado numa cama beliche, no centro de desintoxicação para dependentes químicos. Sou um paciente (ou abrigado, não sei como se diz), e é noite, tento dormir, mas não consigo. Sinto uma agitação estranha, uma inquietação, que me faz mover os pés freneticamente. O lençol se solta das bordas da cama e meu cobertor cai no chão. Uma mulher de olhos tranquilos me traz um comprimido, que eu tomo, e em pouco tempo me sinto melhor.

O liquidificador continua rugindo. Tiro a tampa do copo e coloco mais mel. Gosto com muito mel. Sento-me numa cadeira e começo a escrever: “As abelhas seguem o caminho que leva à cachoeira à procura de flores e água. Estão acostumadas a beber água no riacho.” Paro. Não sei mais o que escrever. Desligo o liquidificador e, finalmente, posso beber um copo da vitamina. Está deliciosa.

Tiro os sapatos, pego uma agulha, que desinfeto no fogo, cruzo uma das pernas e começo a procurar bichos de pé. Não vejo nada de anormal. Levanto a outra perna e também não encontro nada. Não ando descalço em currais e hortas, sou muito cuidadoso. Calço de novo os sapatos e saio em direção às caixas de abelhas. Elas estão calmas hoje. Não exigem muito de mim.

Sigo pelo caminho estreito, cercado de matos, até a cachoeira. Lá tiro meu macacão de trabalhar com as abelhas, minhas roupas de baixo, e entro no lago formado pela queda d’água. Está gelado, mas vou até onde não dá mais pé e mergulho fundo. É bom. Sinto-me rejuvenescer. Sou jovem de novo, cheio de vida, não preciso me preocupar com nada.

Quando acordo, vejo a imagem da cachoeira se distanciando em névoa, e a realidade cai sobre mim como uma pedra enorme se soltando de um prédio. Sou velho, feio, cheio de contas para pagar, mas estou bem, sou forte, vou seguir em frente, até o fim.

Levanto-me da cama e preparo um chá de camomila, que tomo comendo bolachas de coco. Coloco a bolacha quase inteira no chá, até amolecer, e ponho tudo na boca. A parte molhada se dissolve rapidamente, a seca, eu mastigo, sentindo a crocância do biscoito e o sabor distante do coco.  

Enquanto como mais uma bolacha, observando da janela um avião que se distancia no horizonte de prédios e luzes, penso nas abelhas se alimentando, trabalhando, vivendo, sem raciocinar, sem se preocupar, simplesmente sendo... 

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