sábado, 24 de dezembro de 2022

ELA ODEIA PAPAI NOEL

O sofá onde ela dorme fica no meio de uma floresta, numa clareira onde os moradores dos bairros da região jogam fora tudo que não lhes serve mais, de comida estragada a peças de carro, móveis e eletrodomésticos.

Ela tem 53 anos. Mora na rua desde 1999, quando brigou com a família por causa do seu vício em álcool, visto por todos como fraqueza, falta de Deus, de amor e de vergonha na cara. Não aguentou a pressão e saiu de casa. Procurou emprego como confeiteira, que era o que sabia fazer, mas não encontrou. Em seguida, procurou em lojas de roupas, mercearias e outros comércios. Conseguiu trabalhar um tempo como empacotadora em um supermercado, mas começou a faltar, por causa do vício, e acabou demitida.

No sofá, ela se enrosca num grande cobertor de lã e se prepara para dormir, olhando as estrelas no céu limpo que a cobre nesta noite de 24 de dezembro de 2022.

Para ela, o Natal não existe. Não como a maioria das pessoas o vê, regado a comida e presentes, felicitações e famílias reunidas. Nem mesmo vai ao Centro POP receber as sacolinhas das associações de caridade, todos os anos lá, entregando o que conseguiram arrecadar, para depois sumirem e só voltarem no ano seguinte.

Ela tem ódio do Papai Noel. Que velhinho é aquele, que não liga para as pessoas passando fome, os refugiados, os doentes mentais abandonados pelas famílias, os destroçados pela vida, os suicidas? Quem ele representa com aquela barriga estufada e suas roupas de inverno? Os famintos da Etiópia é que não, com certeza.

Está quase dormindo. À meia-noite vai acordar, com as badaladas do sino da igreja, mas logo voltará a dormir, indiferente ao que estará acontecendo lá fora, nas casas e apartamentos, nas igrejas e associações.

Antes de fechar os olhos, porém, vê se aproximar do sofá alguém que, à luz da lanterna que ela acende, está vestido de vermelho e leva na cara uma barba ridícula de Papai Noel. Ela não acredita. Isso nunca tinha acontecido antes. Como eles a descobriram?

Lentamente, ela se abaixa, pega no chão um facão enorme, bem afiado, e se levanta, indo de encontro ao Papai Noel.

“Seu maldito”, ela diz, e avança sobre ele, facão em punho. Papai Noel grita: “Não faça isso, sou eu!”. Ele tira a barba e ela reconhece seu amigo José Pedro, que vive numa barraca de lona no centro da cidade. “Onde você arrumou isso, seu imbecil?”. “Roubei do Papai Noel que distribui balas perto da igreja.” “Tira isso agora.”

Ele tira a roupa e joga no chão. São onze horas da noite. Em um saco que traz dependurado no pescoço, ele pega uma garrafa de cachaça. Os dois se sentam no sofá e bebem. Por um tempo conversam sobre suas tristes vidas, até que ela tem a ideia de fazer uma fogueira. Pegam pedaços de madeira e restos de móveis esparramados pelo lixão e acendem um fogo.

É meia-noite. Quando ouvem os sinos da igreja tocarem, ela pega a roupa e a barba do Papai Noel e joga na fogueira. Não dizem ‘Feliz Natal’. Não dizem nada.

 

 



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