sábado, 17 de outubro de 2015

Medo não me conheceu

"Medo não me conheceu, vaca! Carabina. Quem mirou em mim e eu nele, e escapou: milagre; e eu não ter morrido: milagremente. A morte de cada um já está em edital. Dia de minha sorte. O que digo e desdigo; o senhor escute. Mas o inimigo fuzuava – tiroteio total.
Tudo ali era à maldição, as sementes de matar. (...) Era a cara pura da morte – Av'ave! Marcelino Pampa, logo esse. Nem olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em dois, ia encostar no chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, e bofou da boca diversos dois feixes de sangue. Sangue dele. Semelhava que um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei dez, para a frente, vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais que vive, sem susto de instantaneamente, e está ainda com remela nos olhos, ranho môco no nariz, cuspes na boca, e obra e urina e restos de de-comer, nas barrigas... Mas Marcelino Pampa era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer."
João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 597-8

Nenhum comentário: