terça-feira, 28 de abril de 2015

ser lo que de verdad somos

"...la felicidad, la felicidad, la alegría recuperada, el sentido real de la oración, mis plegarias que se elevaban hasta traspasar las nubes, allí donde sólo existe la música, aquello que llamamos el coro de los ángeles, un espacio no humano pero indudablemente el único espacio que podemos habitar, siquiera conjeturalmente, los humanos, un espacio inhabitable pero el único espacio que vale la pena habitar, un espacio donde dejaremos de ser pero el único espacio en donde podemos ser lo que de verdad somos...".

Roberto Bolaño (1953-2003). Nocturno de Chile (2000). Barcelona: Anagrama, 2014, p. 83

Silencios



"Hay que ser responsable. Eso lo he dicho toda mi vida. Uno tiene la obligación moral de ser responsable de sus actos y también de sus palabras e incluso de sus silencios, sí, de sus silencios, porque también los silencios ascienden al cielo y los oye Dios y sólo Dios los comprende y los juzga, así que mucho cuidado con los silencios. Yo soy responsable de todo. Mis silencios son inmaculados. Que quede claro. Pero sobre todo que le quede claro a Dios. Lo demás es prescindible. Dios no."

Roberto Bolaño (1953-2003). Nocturno de Chile (2000). Barcelona: Anagrama, 2014, p. 11-12

Ajoelhado ao meu sofrimento

"O meu pai ajoelhou-se perante o meu corpo aviltante e chorou. Acalentava o desejo claro de que todas as coisas se corrigissem. Rezava pela correção de todas as tropelias, surpresas más, erros de pressa ou enganada decisão. O meu pai fora feliz, anos antes, jovem, apaixonado pela minha mãe, no tempo do piano, quando ela tocava e se vestia melhor, achava-se bonita, tinha futuro. Um futuro a definir. Ajoelhado ao meu sofrimento, era agora um homem encurralado, impotente. Com os nervos a toldarem-lhe as ideias. Ainda generoso, mas confuso. Não escapava de si mesmo. Andava singular, e singular se predava, se abatia. Sozinho, o meu pai seria suficiente para se consumir. Para se acabar."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 73

sábado, 25 de abril de 2015

Amanhã foi muito bonito

"A Sigridur, quando muito pequena, confundia o ontem, o hoje e o amanhã. Dizia: amanhã foi muito bonito. O meu pai achava que era uma forma de ter visões. A Sigridur só o dizia quando se referia a coisas positivas, alegrias e contentamentos que recolhia. Era uma forma de prever que o dia seguinte seria tão bom quanto o anterior. Como se fosse uma capacidade de sonhar. Das duas, a Sigridur era a sonhadora. Se a morte não a tivesse traído, esperá-la-ia uma vida de maravilhas por diante. Mas a vida não pertencia aos sonhadores, ainda que talhados para o sucesso. A vida era dos que sobravam. Em sobrar estava a oportunidade de prosseguir e de alguma vez se ser feliz."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 102

Serás amado

"Serás amado apenas quando puderes mostrar a tua fraqueza, sem provocar nenhuma força."

Theodor W. Adorno. Minima Moralia

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O dentro de tudo



"Andava de mãos na barriga. Queria o meu filho. Carregava-o com cada pensamento. Não correria risco algum de o perder. Explicaram-me que, naquela idade quase nenhuma, a possibilidade de perder um filho era muito comum. O esqueleto da mãe podia partir-se. Podia vergar como as velhas que apodreciam as rodinhas da coluna. Podia vomitar o filho como um troço de carneiro que não fora capaz de digerir. Era tão criança que me dava susto pensar que com um sopro o corpo se me esvaziaria da gravidez. Como se eu não fosse um ovo, com se fosse apenas um balão. Dava-me medo pensar que a alma dele escapasse no exercício de respirar. Tinha um filho tão novo na barriga que talvez o seu conteúdo fosse ainda indeciso. Dividido entre completar-se ou desistir. E eu levava sempre as mãos à barriga e adorava sentir aquele peso e sentir-me pesada, e esperava todos os ínfimos sinais de movimento. Vivia ansiosa. Ansiava pelo meu filho como quem fizesse o próprio mundo nascer. Depois que nascesse, ele ocuparia o lugar inteiro do mundo. Seria o tamanho inteiro de cada coisa e tudo se justificaria pela sua existência. Pensei: será o dentro de tudo."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 69

Quem sepulta um filho




"Quem sepulta um filho não tem idade. Está para lá das idades, para lá dos tempos, tem uma posse do mundo que independe de todas as limitações. A intensidade de quem sepulta um filho é semelhante à das forças inaugurais ou terminais. Pode fazer e desfazer tudo. Legitimamente lhe é conferido o poder moral de começar ou de acabar tudo."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 83

O mapa de deus

"O mapa de deus é infinito, é preciso que saibamos caber nele a nossa terra, e isso não se faz com abrir para aqui caminhos nem aumentar o tamanho ou o número das casas. No mapa de deus as coisas aparecem pelo admirável do engenho, a candura, a aventura da inteligência ou da intuição."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 96

Mulher completa



"Eu percebi que o Steindór era tão boa pessoa que até gostava da minha tia. A pavorosa tia que gulosamente deglutia o mundo. Pensei que aquele homem era capaz de amar qualquer estafermo. Tive muita pena dele. Fomos o resto do percurso a fincar as botas no chão meio gelado, a esboroar como areia de vidro. Sob os pés tínhamos o futuro. Achei assim. Ia o futuro inteiro no trajeto que traçasse. A vida, agora, era a direção que eu lhe conferisse. Estava com doze anos, faltava pouco para fazer treze, não me via como uma criança. Era uma mulher tão completa quanto apenas a tristeza as sabia fazer."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 89

Poemas

"Os poemas são instintivos, eu disse. Uma natureza instintiva que quase nos redime. Às vezes, um poema acende-se como um candeeiro dentro da cabeça. Fica-se a ver muito bem o que até então nunca se vira. Pendurar um poema e atravessar com ele a noite inteira sem sequer nos darmos conta de que se fez noite."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 104

Filho

"Nunca se perde por inteiro um filho. Ele resta sempre como algo que temos a infinita possibilidade de evocar. Evocamo-lo e ele é. (...) Dizemos filho e ele é sempre algo. Nunca regressa ao tempo em que não existia."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 105

terça-feira, 21 de abril de 2015

Aprender a solidão



"Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos do que representamos entre todos. Talvez não representemos nada, o que me parece impossível. Qualquer rasto que deixemos no eremitério é uma conversa com os homens que, cinco minutos ou cinco mil anos depois, nos descubram a presença. Dificilmente se concebe um homem não motivado para deixar rasto e, desse modo, conversar. E se houver um eremita assim, casmurro, seguro que terá pelo chão e pelo céu uma ideia de companhia, espiritualizando cada elemento como quem procura portas para chegar à conversa com deus. Estamos sempre à conversa com deus. A solidão não existe. É uma ficção das nossas cabeças.


Os homens sós percebem que há alguém na água, na pedra, no vento, no fogo. Há alguém na terra."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 15

Quando for grande

"Quando for grande, quero ser de outra maneira. Quero ser longe. Eu respondia: ninguém é longe. As pessoas são sempre perto de alguma coisa e perto delas mesmas. A minha irmã dizia: são. Algumas pessoas são longe. Quando for grande quero ser longe."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 22

O lado de dentro



"Estar morto deve ser inteligente. A morte deve ser pura inteligência. Não acredito que existam mortos burros. Deus não ia guardar paciência para ter com ele almas burras. O corpo é um traste. A alma deve ser incrível. Quando nos virmos ao espelho e só ali estiver a alma vamos pasmar de maravilha. Maravilhadas com o que somos ou sabemos ser. Viveremos apenas nas costas dos olhos. Entendes. Seremos apenas as costas dos olhos. O lado de dentro."


Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 25

O feitiço das palavras



"Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras."


Manoel de Barros (1916-2014). Poesia Completa. São Paulo: LeYa, 2013, p. 344

sábado, 18 de abril de 2015

Alucinação



"Gately temia e desprezava agulhas e morria de medo do Vírus, que naqueles dias estava derrubando picadores pra tudo quanto era lado. Fackelmann cozinhava o pó para Gately, lhe atava o cinto e deixava Gately olhar atentamente enquanto ele rasgava a embalagem de uma seringa novinha e o cartucho da agulha que Fackelmann conseguia com um RG falso para comprar Iletin na saúde pública para diabetes mellitus. A pior coisa do Dilaudid para Gately era que a passagem da hidromorfona pela barreira hematoencefálica criava uma terrível alucinação mnemônica de cinco segundos em que ele era um bebezão pantagruélico dentro de um bercinho Fisher-Price XXG num campo de areia sob um céu com nuvens de tempestade que se inflava e retrocedia como um grande pulmão cinzento. Fackelmann afrouxava o cinto, se afastava e ficava vendo os olhos de Gately revirarem enquanto ele começava a suar malariamente e encarava o céu respirítico imaginário ao mesmo tempo que suas manzorras esganavam o ar à frente exatamente como um bebê sacode as barras do berço. Aí depois de coisa de cinco segundos o Dilaudid atravessava e batia, e o céu parava de respirar e ficava azul. Um sono de Dilaudid deixava Gately mudo e empapado por três horas."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 934

Nimitz

"Gately acorda abruptamente quando sente a linguinha áspera na sua testa – não muito diferente da língua hesitante de Nimitz, a gatinha de estimação do PN, quando o PN ainda tinha a gatinha, antes do misterioso período em que a gatinha desapareceu e o triturador de lixo não funcionou direito vários dias seguidos e o PN ficou sentado de ressaca com o seu caderninho na mesa da cozinha com a cabeça loura nas mãos, só ficou ali sentado vários dias, e a Mãe de Gately ficava andando por ali pálida como o diabo e se recusou a chegar perto da pia da cozinha por dias a fio, e foi correndo para o banheiro quando Gately finalmente perguntou o que estava acontecendo com o triturador de lixo e cadê a Nimitz."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 954