terça-feira, 28 de abril de 2015

Ajoelhado ao meu sofrimento

"O meu pai ajoelhou-se perante o meu corpo aviltante e chorou. Acalentava o desejo claro de que todas as coisas se corrigissem. Rezava pela correção de todas as tropelias, surpresas más, erros de pressa ou enganada decisão. O meu pai fora feliz, anos antes, jovem, apaixonado pela minha mãe, no tempo do piano, quando ela tocava e se vestia melhor, achava-se bonita, tinha futuro. Um futuro a definir. Ajoelhado ao meu sofrimento, era agora um homem encurralado, impotente. Com os nervos a toldarem-lhe as ideias. Ainda generoso, mas confuso. Não escapava de si mesmo. Andava singular, e singular se predava, se abatia. Sozinho, o meu pai seria suficiente para se consumir. Para se acabar."

Valter Hugo Mãe (1971-). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 73

Nenhum comentário: