"...os amigos do juiz tinham morrido nos melhores hospitais, tinham mudado para outro país, mais de um foi assassinado, outros estavam de cama, inválidos, outros não queriam saber de mais nada a não ser prostitutas, filmes pornográficos e doses cada vez maiores de remédios estimulantes. Por sua vez, a esposa do juiz, depois que os filhos foram estudar no exterior e lá ficaram de uma vez, passou primeiro por uma fase de apatia: não arrumava mais nada em casa nem exigia das empregadas os cuidados a que o ex-juiz estava habituado.
Depois deu início a uma série de tratamentos de beleza e cirurgias plásticas. Aderiu a variadas crenças esotéricas e, em seu apartamento, era comum o juiz ter de abrir os janelões na tentativa de atenuar o cheiro dos incensos. Objetos em feitio de animais fantásticos, ou formados só por arabescos que se multiplicavam em serpentes e em penachos de muitas pontas, objetos feitos de pedra, de cristal, de metais dourados, verdes, apareciam em todo canto da casa em vários tamanhos. E a esposa, com adereços ciganos, hindus, africanos espalhados pela roupa e pelo corpo, empolgada a cada trimestre por uma nova redescoberta de si mesma, parecia ignorar quem era ou tinha sido um dia o seu marido, o juiz, o ex-juiz."
Rubens Figueiredo (1956-). Passageiro do fim do dia (2010). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 130-1
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