segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

O ex-juiz e sua esposa

"...os amigos do juiz tinham morrido nos melhores hospitais, tinham mudado para outro país, mais de um foi assassinado, outros estavam de cama, inválidos, outros não queriam saber de mais nada a não ser prostitutas, filmes pornográficos e doses cada vez maiores de remédios estimulantes. Por sua vez, a esposa do juiz, depois que os filhos foram estudar no exterior e lá ficaram de uma vez, passou primeiro por uma fase de apatia: não arrumava mais nada em casa nem exigia das empregadas os cuidados a que o ex-juiz estava habituado.

Depois deu início a uma série de tratamentos de beleza e cirurgias plásticas. Aderiu a variadas crenças esotéricas e, em seu apartamento, era comum o juiz ter de abrir os janelões na tentativa de atenuar o cheiro dos incensos. Objetos em feitio de animais fantásticos, ou formados só por arabescos que se multiplicavam em serpentes e em penachos de muitas pontas, objetos feitos de pedra, de cristal, de metais dourados, verdes, apareciam em todo canto da casa em vários tamanhos. E a esposa, com adereços ciganos, hindus, africanos espalhados pela roupa e pelo corpo, empolgada a cada trimestre por uma nova redescoberta de si mesma, parecia ignorar quem era ou tinha sido um dia o seu marido, o juiz, o ex-juiz."

Rubens Figueiredo (1956-). Passageiro do fim do dia (2010). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 130-1

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