"Era um rapaz pequeno de catorze anos, deitado à vida depois que o seu avô morrera. Estivera vinte dias fechado em casa sem coragem para sair, disse alguém sobre ele. Ficara vinte dias sem saber o que fazer, como fazer, até que uma vizinha metediça se lembrou dele e foi mandá-lo mexer-se. Uma vizinha que lhe pôs um pão fresco na boca, lhe abriu a água da banheira e lhe disse que o sol estava alto e era como um patrão. Está a ver-te, dizia ela. O sol era que mandava, a significar a vida que se punha a continuar para além até das grandes tristezas. Era um menino pequeno, um corpito de poucos quilos e muito susto, assim o viu o Crisóstomo. Era um menino na ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se segurar e sem conhecer o caminho. Os seus olhos tinham um precipício. E ele estava quase a cair olhos adentro, no precipício de tamanho infinito escavado para dentro de si mesmo. Um rapaz carregado de ausências e silêncios."
Valter Hugo Mãe (1971-). O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 15
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