"De repente, a tragédia. O general Sanjurjo morreu horrivelmente carbonizado, ia ocupar o seu lugar na diretoria militar do movimento, o avião, ou por levar carga a mais, ou por falta de força do motor, se não é que tudo vai dar à mesma causa, não conseguiu alçar o voo, foi bater numas árvores, depois contra um muro, à vista de toda aquela gente espanhola que acudira ao bota-fora, e ali, sob um sol impiedoso, arderam o avião e o general numa imensa tocha, ainda assim teve sorte o aviador, Ansaldo de seu nome, escapou com ferimentos e queimaduras sem maior gravidade. Dizia o general que não senhor, não pensava em deixar Portugal tão cedo, e era mentira, mas estas falsidades devemos ter a misericórdia de compreendê-las, são o pão da política, embora não saibamos se Deus pensa da mesma maneira, quem nos dirá que não foi punição divina, toda a gente sabe que Deus castiga sem pau nem pedra, do fogo é que já tem uma longa prática. Agora, ao mesmo tempo que o general Queipo de Llano proclama a ditadura militar em toda a Espanha, é o corpo do general Sanjurjo, também marquês de Riff, velado na igreja de Santo António do Estoril, e quando dizemos corpo, é o que dele resta, um tocozinho negro, parece um caixãozinho de criança, homem que tão corpulento era em vida, reduzido ao triste tição, é bem verdade que não somos nada neste mundo, por mais que custa a acreditar."
José Saramago (1922-2010). O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Bisleya, 2012, p. 356
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