sábado, 23 de fevereiro de 2013

A grande tempestade


Que pequeno é aquilo contra que lutamos, 
como é imenso o que contra nós luta; 
se nos deixássemos, como fazem as coisas, 
assaltar assim pela grande tempestade,
chegaríamos longe e seríamos anônimos. 

Triunfamos sobre o que é pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o eterno nem o extraordinário
serão derrotados por nós.

(...)

Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior.

Rainer Maria Rilke (1875-1926). In: O Livro das Imagens (1902). Trad. de Maria João Costa Pereira

Versão em inglês do original em alemão:

What we choose to fight is so tiny!
What fights us is so great!
If only we would let ourselves be dominated
as things do by some immense storm,
we would become strong too, and not need names.

When we win it's with small things,
and the triumph itself makes us small.
What is extraordinary and eternal
does not want to be bent by us.

(...)

Winning does not tempt that man.
This is how he grows: by being defeated, decisively,
by constantly greater beings.

Trad. de Robert Bly

As cidades invisíveis



Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça que vive uma vida ou um instante que poderiam ser seus; ele podia estar no lugar daquele homem se tivesse parado no tempo tanto tempo atrás, ou então se tanto tempo atrás numa encruzilhada tivesse tomado uma estrada em vez de outra e depois de uma longa viagem se encontrasse no lugar daquele homem e naquela praça. Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.

- Você viaja para reviver o seu passado? - era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: - Você viaja para reencontrar o seu futuro?

E a resposta de Marco:

- Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.

Italo Calvino. As cidades invisíveis (1972). São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. 28-9

O Morto



Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos.
Sentado como um doutor
Veja que respeito nutre pelo silêncio...
Que morto!
Um piano dormindo no fundo de um poço
Não é mais cômodo do que um homem morto num
porto.
Veja que comodidade:
Ele não usará seus dedos secos nunca mais para pegar
em moças...
Que morto!

Manoel de Barros. Poesias (1956). In: Gramática Expositiva do Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. p. 109

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Poema sujo



(...)

Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
enquanto discuto caminho
lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro
dos céus da cidade estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode – por um descuido – esvair-se por meu
pulso
aberto

Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa deitada
barriga pernas e pés
com cinco dedos cada um (por que
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se

meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê

Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai

corpo que se pára de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre

(...)


Ferreira Gullar (1930-). Poema sujo (1976)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Canção de amor


Veio o câncer no fígado, veio o homem
pulando da cama no chão e andando
de gatinhas, gritando: 'me deixa, gente,
me deixa', tanta era sua dor sem remédio.
Veio a morte e nesta hora H, a camisa sem botão.
Eu supliquei: eu prego, gente, eu prego,
mas espera, deixa eu chorar primeiro.

(...)

Adélia Prado. "Bagagem" (1976). In: "Poesia reunida". São Paulo: Arx, 1991. p. 100

Keeping Things Whole


In a field
I am the absence
of field.
This is
always the case.
Wherever I am
I am what is missing.

When I walk
I part the air
and always
the air moves in
to fill the spaces
where my body’s been.

We all have reasons
for moving.
I move
to keep things whole.


Mark Strand (1934-). "Keeping Things Whole". In: "Selected Poems" (Alfred A. Knopf, 2002)

Imagem: "Wheat Field With a Lark" (1887), de Vincent Van Gogh

Lines for Winter


Tell yourself
as it gets cold and gray falls from the air
that you will go on
walking, hearing
the same tune no matter where
you find yourself—
inside the dome of dark
or under the cracking white
of the moon’s gaze in a valley of snow.
Tonight as it gets cold
tell yourself
what you know which is nothing
but the tune your bones play
as you keep going. And you will be able
for once to lie down under the small fire
of winter stars.
And if it happens that you cannot
go on or turn back
and you find yourself
where you will be at the end,
tell yourself
in that final flowing of cold through your limbs
that you love what you are.

Mark Strand. "Lines for Winter". In: "The Late Hour" (1978)

Memórias de Adriano (II)


"Antínoo, agarrado ao meu braço, tremia, não de terror, como então supus, mas sob o peso de um pensamento que vim a compreender muito mais tarde. Um ser angustiado pelo receio de decair, isto é, envelhecer, devia ter prometido a si próprio, há muito tempo, morrer ao primeiro sinal de declínio, ou talvez muito antes. Hoje chego a crer que essa promessa, que tantos de nós fazemos sem, contudo, mantê-la, remontava há muito tempo atrás, à época de Nicomédia e do nosso encontro à beira da fonte. Ela explicava sua indolência, seu ardor no prazer, sua tristeza e sua total indiferença por qualquer plano de futuro. Mas era importante ainda que aquela partida não tivesse o ar de uma revolta, e que não incluísse nenhuma queixa. (...) A claridade da aurora foi quase nada em comparação ao sorriso que iluminou aquele rosto perturbado. Alguns dias mais tarde, revi esse mesmo sorriso, apenas mais velado, mais ambíguo: durante a ceia, Polemon, que se ocupava com a quiromancia, quis examinar a mão do jovem, a palma onde uma surpreendente chuva de estrelas assustava a mim próprio. O menino retirou a mão, fechando-a com um gesto suave, quase pudico. Pretendia guardar o segredo dos seus planos e do seu fim." (p. 185-6)
................................................................................
"Pequena alma, alma terna e inconstante, companheira do meu corpo, de que foste hóspede, vais descer àqueles lugares pálidos, duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora. Por um momento ainda contemplemos juntos os lugares familiares, os objetos que certamente nunca mais veremos... Esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos...". (p. 287)

Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano (1951). Rio de Janeiro: Record/Altaya

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Toca minha mão


(...)

Toca minha mão.
Quem fez o amor não vazará meus olhos
porque busco a alegria.
A vida não vale nada,
por isso gastei meus bens,
fiz um grande banquete e este vestido.
Olha-me para que ardam os crisântemos
e morra a puta
que pariu minha tristeza.


Adélia Prado. O coração disparado (1978). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. p. 192

Memórias de Adriano


"O vinho inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo e nas riquezas minerais ocultas. Uma taça de Samos degustada ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contrário, saboreada numa noite de inverno, num estado de fadiga tal que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada e, por vezes, demasiado forte para um cérebro humano." (p. 19)
............................................................
"Nada se compara à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras gravadas sobre a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de nós. Foi em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do meu mausoléu, às margens do Tibre, mas em grego terei vivido e pensado." (p. 42-3)
............................................................
"O homem mais tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca corretamente a flauta; tal feitor, que dilacera a chicotadas o dorso dos escravos, é talvez um bom filho; tal idiota partilharia comigo seu último pedaço de pão. Existem poucos a quem não se possa ensinar convenientemente alguma coisa. Nosso grande erro é tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que ele não tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui." (p. 47)
............................................................
"Um ser ébrio de vida não prevê a morte; ela não existe; ele a nega em cada uma de suas atitudes. Se a recebe é provavelmente sem o saber; a morte não é para ele senão um choque ou um espasmo. Sorrio amargamente ao dizer a mim mesmo que, hoje, dentre dois pensamentos, um eu consagro a meu próprio fim, como se fossem necessários tantos preparativos para decidir este corpo gasto a enfrentar o inevitável. Naquela época, ao contrário, um homem jovem, que tanto teria a perder se não vivesse alguns anos mais, arriscava todos os dias alegremente seu futuro." (p. 61-2)
............................................................
"Mal havia chegado a Cárax, o imperador, cansado, fora sentar-se na praia, em frente das pesadas águas do golfo Pérsico. Nessa época ele ainda não duvidava da vitória, mas, pela primeira vez, sentiu-se esmagado pela vastidão do mundo, pelo sentimento da idade e dos limites que nos encerram a todos. Grossas lágrimas correram pelas faces enrugadas daquele homem que ninguém teria julgado capaz de chorar. O poderoso chefe que levara as águias romanas até as praias ainda inexploradas compreendeu, nesse momento, que nunca chegaria a navegar naquele mar tão sonhado: a Índia, a Bactriana e todo o obscuro Oriente, cuja simples antevisão a distância tanto o perturbava, permaneceriam para ele apenas como um sonho e alguns nomes. No dia seguinte as más notícias o forçaram a tornar a partir. Desde então, cada vez que o destino me disse não, lembrei-me daquelas lágrimas choradas uma noite, numa praia longínqua, por um velho que, pela primeira vez, encarava sua vida e sua idade face a face, como talvez nunca tivesse feito até então." (p. 95-6)

Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano (1951). Rio de Janeiro: Record/Altaya

Foto: Marguerite Yourcenar (1903-1987), escritora belga, primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras, em 1980

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Poeta


A morte de Tsvetaeva elevou-a acima da Terra – e ela continua ali. Em 1913, pensando em sua morte, ela escreveu num poema:

[...] ‘Não sou eu que será colocada sob a terra,
Não, não sou eu.’

Ela tinha toda a razão: apenas seus despojos mortais repousam no cemitério de Elabuga; o poeta não conhece a morte. Ou ainda: a morte não o impede de continuar a doar; simplesmente, ele não pode mais receber. Jesus também não crê em sua morte definitiva: ‘Pois no lugar em que dois ou três se reúnam em meu nome, estou no meio deles.’

Tzvetan Todorov. A Beleza salvará o Mundo (Wilde, Rilke e Tsvetaeva: os aventureiros do absoluto). Rio de Janeiro: Difel, 2011. p. 248

Entre castelos


Tenho conhecido castelos à beira-mar,
castelos no deserto, castelos nos rochedos
castelos na neblina, castelos nas florestas.
No entanto, nunca quis ser rei.

Entre seteiras, torres
pontes levadiças, calabouços
ouço ecos de festins,
duelos de espadas,
roçar de longas saias,
lamentos, cochichos de aias,
tropel de notícias e sussurros
de traição.

Que súdito sou, vagando
nesses adros taciturno, boquiaberto?
Que notícias de guerra trago?
Que segredo entrego ao rei?

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia Reunida (1965-1999) - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 258-259

Foto: Castelo de Loches (França), construído no século IX

Arte mortal


Anda me cercando a morte
por vários lados
abrindo alçapões
até dentro de casa.
Anda me espreitando
querendo intimidades
dentro dos lençóis.

Anda num vai-e-vem
de comadre sirigaita. Vem
lança um boato e parte. Vem
toda manhã
deixa a mensagem
no jornal do espelho
inscrevendo
no meu rosto
sua antiobra de arte.

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia Reunida (1965-1999) - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 280

Sedução mortal


Olho as coisas com um desprendimento
com uma ternura angelical.
Olho-me já de longe, etéreo,
um centímetro acima do instinto vital.
A morte me seduz
e a ela me consagro
com um desprendimento fatal.

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia Reunida (1965-1999) - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 286

Desmonte


Desmontar o acessório.
Assumir as proporções próprias.
Não ser mais que o barco
ou montaria
para evitar naufrágio e ranhuras
no cruzamento
com desbordantes criaturas.

Tirar dos ombros
esse peso: descarregá-lo.
Fardo.

Como se descarrega
um morto, um fantasma
um eu inócuo, torto."

(...)

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia Reunida (1965-1999) - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 145

Vício antigo


Como é que um homem
com 52 anos na cara
se assenta ante uma folha em branco de papel
para escrever poesia?

Não seria melhor investir em ações?
Negociar com armas?
Exportar alimentos?
Ser engenheiro, cirurgião
ou vender secos e molhados num balcão?

Como é que um homem
com 52 anos na cara
continua diante de uma folha em branco
espremendo seu já seco coração?

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia reunida (1965-1999) - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 203-4

Estão se adiantando


Eles estão se adiantando, os meus amigos.
Sei que é útil a morte alheia
para quem constrói seu fim.
Mas eles estão indo, apressados,
deixando filhos, obras, amores inacabados
e revoluções por terminar.

Não era isto o combinado.

Alguns se despedem heróicos,
outros serenos. Alguns se rebelam.
O bom seria partir pleno.

O que faço? Ainda agora
um apressou seu desenlace.
Sigo sem pressa. A morte
exige trabalho, trabalho lento
como quem nasce.

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia reunida (1965-1999) - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 218