"O vinho inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo e nas riquezas minerais ocultas. Uma taça de Samos degustada ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contrário, saboreada numa noite de inverno, num estado de fadiga tal que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada e, por vezes, demasiado forte para um cérebro humano." (p. 19)
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"Nada se compara à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras gravadas sobre a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de nós. Foi em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do meu mausoléu, às margens do Tibre, mas em grego terei vivido e pensado." (p. 42-3)
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"O homem mais tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca corretamente a flauta; tal feitor, que dilacera a chicotadas o dorso dos escravos, é talvez um bom filho; tal idiota partilharia comigo seu último pedaço de pão. Existem poucos a quem não se possa ensinar convenientemente alguma coisa. Nosso grande erro é tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que ele não tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui." (p. 47)
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"Um ser ébrio de vida não prevê a morte; ela não existe; ele a nega em cada uma de suas atitudes. Se a recebe é provavelmente sem o saber; a morte não é para ele senão um choque ou um espasmo. Sorrio amargamente ao dizer a mim mesmo que, hoje, dentre dois pensamentos, um eu consagro a meu próprio fim, como se fossem necessários tantos preparativos para decidir este corpo gasto a enfrentar o inevitável. Naquela época, ao contrário, um homem jovem, que tanto teria a perder se não vivesse alguns anos mais, arriscava todos os dias alegremente seu futuro." (p. 61-2)
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"Mal havia chegado a Cárax, o imperador, cansado, fora sentar-se na praia, em frente das pesadas águas do golfo Pérsico. Nessa época ele ainda não duvidava da vitória, mas, pela primeira vez, sentiu-se esmagado pela vastidão do mundo, pelo sentimento da idade e dos limites que nos encerram a todos. Grossas lágrimas correram pelas faces enrugadas daquele homem que ninguém teria julgado capaz de chorar. O poderoso chefe que levara as águias romanas até as praias ainda inexploradas compreendeu, nesse momento, que nunca chegaria a navegar naquele mar tão sonhado: a Índia, a Bactriana e todo o obscuro Oriente, cuja simples antevisão a distância tanto o perturbava, permaneceriam para ele apenas como um sonho e alguns nomes. No dia seguinte as más notícias o forçaram a tornar a partir. Desde então, cada vez que o destino me disse não, lembrei-me daquelas lágrimas choradas uma noite, numa praia longínqua, por um velho que, pela primeira vez, encarava sua vida e sua idade face a face, como talvez nunca tivesse feito até então." (p. 95-6)
Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano (1951). Rio de Janeiro: Record/Altaya
Foto: Marguerite Yourcenar (1903-1987), escritora belga, primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras, em 1980
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