segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Le Comte de Monte-Cristo


Comme ces aventureux capitaines qui s'embarquent pour un dangereux voyage, qui méditent une périlleuse expédition, je préparais les vivres, je chargeais les armes, j'amassais les moyens d'attaque et de défense, habituant mon corps aux exercices les plus violents, mon âme aux chocs les plus rudes, instruisant mon bras à tuer, mes yeux à voir souffrir, ma bouche à sourire aux aspects les plus terribles; de bon, de confiant, d'oublieux que j'étais, je me suis fait vindicatif, dissimulé, méchant, ou plutôt impassible comme la sourde et aveugle fatalité. Alors, je me suis lancé dans la voie qui m'était ouverte, j'ai franchi l'espace, j'ai touché au but: malheur à ceux que j'ai recontrés sur mon chemin! (p. 710)

(...)

Il n'y a ni bonheur ni malheur en ce monde, il y a la comparaison d'un état à un autre, voilà tout. Celui-là seul qui a éprouvé l'extrême infortune est apte à ressentir l'extrême félicité. Il faut avoir voulu mourir, Maximilien, pour savoir combien il est bon de vivre. (p. 772)

Alexandre Dumas. Le Comte de Monte-Cristo. Tome II. Classiques de Poche

Sou de poucos amigos


"Sou de poucos amigos
Grandes partidas
Partes rompidas
Sou de não falar demais
Despedidas no cais
Sou cor lilás
Sou feita de névoas
Nódulos e néctares
Sou de aparecer de repente
De repetir sentimentos
Forçar certos momentos
Sou do tamanho de mim
Molécula carmim
Malévola no fim."

Paula Taitelbaum. Ménage à trois

Feliz Natal


"agora vejamos
quem está na minha lista para o Natal:
tem as três garotas furiosas
que me disseram para nunca mais
ligar de novo
e tem o cara do
Jiffy-Lube que disse que não tinha
tempo de trocar o óleo do meu carro
ontem
e tem aquele cara negro
do posto do pedágio
que levou pro lado pessoal
quando eu estava apenas brincando.
tem o cara que me vendeu
esta casa
que fez ele mesmo o encanamento
e fiação.
tem o machão que ganhou
8 milhões para lutar com o campeão
e desistiu porque disse
que tinha cólicas estomacais.
e tem o jóquei
do outro dia
que não aguentaria
a abertura da grade
quando eu tinha apostado nele 20 pila como vencedor,
e 20 como placê,
e daí todas as pessoas
que virão no dia de Natal ou
na véspera
ou no dia seguinte
porque é a temporada.
e daí também tem todos os vizinhos
que não vão falar comigo
porque me ouviram outra
noite
quando eu corria pelo jardim em frente da casa
bêbado e pelado praguejando,
atirando pedras.
e daí tem todos os balconistas
nos caixas em todo lugar
que parecem com estátuas de plástico
enquanto eu espero em suas longas filas
tentando reter um
movimento intestinal.

e daí, meu amigo, tem
você"

Charles Bukowski (1920-1994)

minha sujeira


"uma namorada chegou
me construiu uma cama
esfregou e encerou o chão da cozinha
esfregou as paredes
aspirou o pó
limpou a privada
a banheira
esfregou o chão do banheiro
e cortou minhas unhas e
meus cabelos.

então
naquele mesmo dia
o encanador veio e consertou a torneira da cozinha
e a privada
e o homem do gás consertou o aquecedor
e o homem do telefone, o telefone.
agora me sento aqui em meio a tanta perfeição.
tudo está tranquilo.
rompi com minhas 3 namoradas.

me sinto melhor quando tudo está
bagunçado.
vai levar alguns meses até que as coisas voltem ao
normal:
não consigo encontrar sequer uma barata para viver em comunhão.

perdi meu ritmo.
não consigo dormir.
não consigo comer.

roubaram-me
minha sujeira."

Charles Bukowski (1920-1994)

domingo, 23 de dezembro de 2012

Dr. Watson and Mr. Sherlock Homes



I knew that seclusion and solitude were very necessary for my friend in those hours of intense mental concentration during which he weighed every particle of evidence, constructed alternative theories, balanced one against the other, and made up his mind as to which points were essential and which immaterial. I therefore spent the day at my club and did not return to Baker Street until evening. It was nearly nine o'clock when I found myself in the sitting-room once more.

My first impression as I opened the door was that a fire had broken out, for the room was so filled with smoke that the light of the lamp upon the table was blurred by it. As I entered, however, my fears were set at rest, for it was the acrid fumes of strong coarse tobacco which took me by the throat and set me coughing. Through the haze I had a vague vision of Holmes in his dressing-gown coiled up in an armchair with his black clay pipe between his lips. Several rolls of paper lay around him. 

"Caught cold, Watson?" said he.

"No, it's this poisonous atmosphere."

"I suppose it is pretty thick, now that you mention it."

"Thick! It is intolerable."

"Open the window, then! You have been at your club all day, I perceive."

"My dear Holmes!"

"Am I right?"

"Certainly, but how---------?"

He laughed at my bewildered expression.

Arthur Conan Doyle. The Hound of the Baskervilles (1902). Dover Publications, 1994. p. 18

The art of losing


"The art of losing isn't hard to master;

so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster."

Elizabeth Bishop (1911-1979)

From 'The Complete Poems - 1927-1979', by Elizabeth Bishop, published by Farrar, Straus & Giroux

“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério. ”

Elizabeth Bishop (1911-1979)

Tradução de Paulo Henriques Britto

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

a man silent at the window


"this fear of being what they are:
dead. 

at least they are not out on the street, they
are careful to stay indoors, those
pasty mad who sit alone before their tv sets,
their lives full of canned, mutilated laughter.

their ideal neighborhood
of parked cars
of little green lawns
of little homes
the little doors that open and close
as their relatives visit
throughout the holidays
the doors closing
behind the dying who die so slowly
behind the dead who are still alive
in your quiet average neighborhood
of winding streets
of agony
of confusion
of horror
of fear
of ignorance.

a dog standing behind a fence.

a man silent at the window."

Charles Bukowski (1920-1994)

sábado, 15 de dezembro de 2012

Barba ensopada de sangue


Tu fez muitos amigos aqui?

Alguns.

Achei que tu tava meio ermitão.

A vida aqui é normal.

Normal pra ti. Eu sinceramente não entendo por que tu precisa viver enfiado num lugar abandonado desses no meio do inverno enquanto podia estar em Porto Alegre ou até em São Paulo como o teu irmão. Eu acho que tu só tá chateado com a morte do teu pai e vai acabar voltando. Mas tu que sabe da tua vida, claro. Tu é adulto. Sei que tu gosta de ficar sozinho, desde pequenininho tu era desse jeito e sempre respeitei, mas com essa falta de vontade de fazer alguma coisa que preste da tua vida eu nunca concordei não. Vai ficar aqui dando aula de natação pruns gatos-pingados até quando? Sozinho com aquela cachorra nojenta. Ela vai morrer logo. Isso aqui não é lugar pra constituir uma vida. Nunca deixei de achar que essa tua falta de iniciativa é culpa do teu pai, ele que sempre me dizia pra te deixar em paz. Passava a mão na tua cabeça. Deixa o guri estudar educação física. Deixa o guri pedalar e nadar, é o que ele gosta. Tu herdou o pior do teu pai, que não era a garrafa nem os charutos nem a falta de respeito que tinha comigo, mas sim essa noção absurda de que vocês poderiam viver no meio do mato como se vivia mil anos atrás e que só por acaso nasceram no século vinte e um e vivem numa grande cidade onde se podem realizar coisas, criar coisas, ganhar dinheiro, viajar pelo mundo –

Eu nasci no século vinte. O pai também.

– e estudar coisas fascinantes e viver uma vida moderna, interessante, cheia de cultura e aproveitar isso pra ter uma família própria que também vai poder se beneficiar disso tudo e assim por diante. Esse tipo de coisa que os antepassados da gente acham que a gente vai fazer, sabe? Ele não me deixava cobrar isso de ti na tua adolescência e agora tu pensa que deixar a barba crescer numa quitinete de veraneio alugada, mofada e com cheiro de peixe ganhando o suficiente pra pagar a conta de luz é uma vida boa o bastante. Não é como eu vejo. Uma hora tu vai querer casar, vai querer fazer uma casa pra ti. Essa tua namorada nova é de Porto Alegre, não é? Ela quer passar o resto da vida aqui? Duvido que queira. Pretende ficar com ela? Pensa em casar com ela algum dia? Pretende ter filhos? Eles vão ter acesso a uma escola decente neste lugar? Tu me disse que ela é uma guria culta, tá fazendo mestrado. Deve ser uma pessoa com ambição. Eu já vi esse filme antes. Esse filme já passou e tu te dá mal nele.

Daniel Galera. Barba ensopada de sangue. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 282-283

domingo, 9 de dezembro de 2012

ando assim

"ando assim
tipo um erro flácido ambulante
sem êxito, hesitante
disco riscado
fora de catálogo
no pó do instante
ando assim oco, uma crosta
vodu cansado que com a sorte
nem mais dialoga - diamante
ando assim sem linguagem
sem faro, espantalho fora de foco
ando assim
mais opaco que olímpico
esquivo, íntimo, insípido
um mastodonte pensando
desamparado
aspirando a paralelepípedo
ando assim meio buster keaton
um tanto de lágrima hasteando o riso
ando assim raso
indiferente
me divertindo um bocado
eu ando mijando no poste
porque o banheiro
está sempre lotado"

Marcelo Montenegro (1971-)

Fonte: Germina Literatura

Fernando Pessoa


"Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância 
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração."

......................

"Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e ervas..."

..............................................


"A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou."

........................................................

"Vim para aqui repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa,
Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,
A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir."

.........................................................................


"Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão."

...........................................................................

"Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses."

........................................

"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada."

...................................

"Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno -
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no fato de aceitar -
No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável."

......................................................................................................

"Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é."

...............................................................

"Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há."


Fernando Pessoa (1888-1935). Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1977

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Repara


"Repara. Há sempre alguém
guardando a tralha. Tremendo a foto.
Aprimorando a tara.

Há um deus maluco embaralhando
as cartas. Uma banana quase preta
na fruteira. E o último gole
da cerveja em lata."

...........................................................

"De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapatos.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio."

Marcelo Montenegro (1971 -)

sábado, 24 de novembro de 2012

uma porta fechada com a chave para dentro


"Era um desses dias em que tudo corre bem.
Tinha limpado a casa e escrito
dois ou três poemas que me agradavam.
Não pedia mais nada.
Então saí pelo corredor para retirar o lixo
e atrás de mim, com um pé-de-vento,
a porta se fechou.
Fiquei sem chaves e às escuras
sentindo as vozes de meus vizinhos
através das suas portas.
É transitório, disse para mim mesmo;
porém assim também podia ser a morte:
um corredor escuro,
uma porta fechada com a chave para dentro.
O lixo nas mãos."

Fabián Casas (poeta argentino)

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Amor é o que se arrasta pelo chão


"Amor é uma luz à

noite atravessando o nevoeiro

amor é uma tampinha de cerveja
pisada no caminho
do banheiro

amor é a chave perdida da sua porta
quando você está bêbado

amor é o que acontece
uma vez a cada dez anos

amor é um gato esmagado

amor é o velho jornaleiro na
esquina que
desistiu

amor é o que você acha que a outra
pessoa destruiu

amor é o que desapareceu junto
com a era dos navios encouraçados

amor é o telefone tocando,
a mesma voz ou uma outra
voz mas nunca a voz
correta

amor é traição
amor é o incêndio dos
sem-teto num beco

amor é aço
amor é a barata
amor é uma caixa de correio

amor é a chuva sobre o telhado
de um velho hotel
em Los Angeles

amor é o seu pai num caixão
(aquele que te odiava)

amor é um cavalo com a perna
quebrada
tentando se levantar
enquanto 45.000 pessoas
observam

amor é o jeito que nós fervemos
como a lagosta

amor é tudo que nós dissemos
que não era

amor é a pulga que você não consegue
encontrar

e o amor é um mosquito

amor são 50 lançadores de granada

amor é um penico
vazio

amor é uma rebelião em San Quentin
amor é um hospício
amor é um burro parado numa
rua de moscas

amor é um banco de bar vazio

amor é um filme do Hindenburg
se retorcendo
um momento que ainda grita

amor é Dostoiévski na
roleta

amor é o que se arrasta pelo
chão

amor é a sua mulher dançando
colada com um estranho

amor é uma senhora
roubando um pedaço de
pão

e o amor é uma palavra usada
muitas vezes e
muitas vezes
cedo demais."

Charles Bukowski (1920-1994)

Não sou nada


"Não sou nada.

Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isto, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

(...)

"Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensame
ntos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada."

(...)


"Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha."

(...)

"Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo."

(...)

"Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido - 
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os Deuses fazem viver..."

(...)

"Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para
todos os universos.

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim."

Fernando Pessoa. Poemas escolhidos. Klick editora, p. 121, 122, 123, 127 e 128

As pessoas não são boas umas com as outras


há tamanha solidão no mundo
que você pode vê-la no movimento lento dos
braços de um relógio.

pessoas tão cansadas
mutiladas
tanto pelo amor como pelo desamor.

as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras
cara a cara.

os ricos não são bons para os ricos
os pobres não são bons para os pobres.

estamos com medo.

nosso sistema educacional nos diz que
podemos ser todos
grandes vencedores.

eles não nos contaram
a respeito das misérias
ou dos suicídios.

ou do terror de uma pessoa
sofrendo sozinha
num lugar qualquer

intocada
incomunicável

regando uma planta.

as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.

suponho que nunca serão.
não peço para que sejam.

mas às vezes eu penso sobre
isso.

Charles Bukowski (1920-1994)

A roda enferrujada do dia


A roda enferrujada do dia

roda lentamente
meu desejo insatisfeito
adoecendo os sentidos

A roda gasta do dia
deglute com cegos dentes
a semente
o amor que poderia

A chuva fria do ferro envelhecido
entristece o futuro e o
pendente

E essa dor atemporal se estende
sem cura no metal ruído
polui a alvura de fluidos permanentes
que não passam
que não passam

Rosália Milsztajn

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Dois irmãos


(...) Laval internou-se no subsolo de uma casa à margem do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto da caverna, quieto e emudecido, o rosto cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imolação. Não era greve de fome nem inapetência. Talvez desespero. Seus poemas, cheios de palavras raras, insinuavam noites aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou escape. Às sextas-feiras distribuía-os aos alunos, pensando que ninguém os leria, pensando sempre no pior. Lá no íntimo era um pessimista, um desencantado, e tentava compensar esse desencanto por meio da aparência, com seu jeito de dândi. Refutava o rótulo de poeta, mas não se incomodava quando o chamavam de excêntrico ou afetado. Não sei qual dos dois atributos o definia melhor. Nenhum, talvez. Mas foi um mestre. E também um atormentado que escrevia, sabendo que não publicaria nada. Seus poemas repousam por aí, em gavetas esquecidas ou na memória de ex-alunos. 

Milton Hatoum. Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 145

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Um minuto



"Num ponto qualquer afastado do universo que se expande no brilho de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais enganoso da 'história universal': mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, a estrela congelou e os animais inteligentes morreram."

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Estrelas e madrugadas


Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!

(...)

Oh! todo o sossego e lucidez das madrugadas, quando o último grilo já parou seu canto e ainda não se ouviu o canto do primeiro pássaro...

Mario Quintana

L'invention de la solitude



A. se rappelle avec quelle emótion, à Paris, en 1974, il a découvert ce poème de Lycophron (300 ans environ avant J.-C.), un monologue de dix-sept cents vers, délires de Cassandre dans sa prison avant la chute de Troie. L’oeuvre lui a été révélée par la traduction française de Q., un écrivain du même age que lui (vingt-quatre ans). Trois ans plus tard, rencontrant Q. dans un café de la rue Conde, il lui a demandé s’il en existait à sa connaissance une version anglaise. Q. lui-même ne lisait ni ne parlait l’anglais mais, oui, il l’avait entendu dire, d’un certain lord Royston, au début du XIXe siècle. Dès son retour à New York, pendant l’été 1974, A. s’est rendu à la bibliothèque de Columbia University pour rechercher ce livre. A sa grande surprise, il l’a trouvé. Cassandre, traduit du grec original de Lycophron et illustré de notes; Cambridge, 1806.

Cette traduction est le seul ouvrage de quelque importance que l’on doive à la plume de lord Royston. Il l’a achevée alors qu’il était encore étudiant à Cambridge et a publié lui-même une luxueuse édition privée du poème. Puis il est parti, après l’obtention de ses diplômes, pour le traditionnel périple sur le continent. A cause des désordres napoléoniens en France, il ne s’est pas dirigé ver le Sud – comme il eût été naturel pour un jeune homme de son éducation – mais vers le Nord, vers les pays scandinaves, et en 1808, alors qu’il naviguait sur les eaux perfides de la Baltique, il s’est noyé au cours d’un naufrage au large des côtes russes. Il avait juste vingt-quatre ans. (...)

En découvrant cette traduction, A. s’est rendu compte qu’un grand talent avait disparu dans ce naufrage. L’anglais de Royston roule avec une telle violence, une syntaxe si habile et si acrobatique qu’à la lecture du poème on se sent pris au piège dans la bouche de Cassandre.

Il a été frappé aussi de constater que Royston et Q., l’un comme l’autre, avaient à peine vingt ans quand ils ont traduit cette oeuvre. A un siècle et demi de distance, l’un et l’autre ont enrichi leur propre langage, par le truchement de ce poème, d’une force particulière. L’idée l’a effleuré, un moment, que Q. était peut-être une réincarnation de Royston. Tous les cent ans environ, Royston renaîtrait afin de traduire le poème dans une autre langue et, de même que Cassandre était destinée à n’être pas crue, de même l’oeuvre de Lycophron demeurerait ignorée de génération en génération.
Un travail inutile, par conséquent: écrire un livre qui restera fermé à jamais. Et encore, cette vision: le naufrage. La conscience engloutie au fond de la mer, le bruit horrible des craquements du bois, les grands mâts qui s’effondrent dans les vagues. Imaginer les pensées de Royston au moment où son corps s’écrasait à la surface des flots. Imaginer le tumulte de cette mort.

Paul Auster, L'invention de la solitude (1982). Babel, 2009, p. 200-202

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Siddhartha (II)



From that hour Siddhartha ceased to fight against his destiny. There shone in his face the serenity of knowledge, of one who is no longer confronted with conflict of desires, who has found salvation, who is in harmony with the stream of events, with the stream of life, full of sympathy and compassion, surrendering himself to the stream, belonging to the unity of all things. (p. 136)

“When someone is seeking,”, said Siddhartha, “it happens quite easily that he only sees the thing that he is seeking; that he is unable to find anything, unable to absorb anything, because he is only thinking of the thing he is seeking, because he has a goal, because he is obsessed with his goal. Seeking means: to have a goal; but finding means: to be free, to be receptive, to have no goal. You, O worthy one, are perhaps indeed a seeker, for in striving towards your goal, you do not see many things that are under your nose.” (p. 140)

Hermann Hesse, Siddhartha (1922), Bantam Books

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Siddhartha


"At times he heard within him a soft, gentle voice, which reminded him quietly, complained quietly, so that he could hardly hear it. Then he suddenly saw clearly that he was leading a strange life, that he was doing many things that were only a game, that he was quite cheerful and sometimes experienced pleasure, but that real life was flowing past him and did not touch him. Like a player who plays with his ball, he played with his business, with the people around him, watched them, derived amusement from them; but with his heart, with his real nature, he was not there. His real self wandered elsewhere, far way, wandered on and on invisibly and had nothing to do with his life."

"You are like me; you are different from other people. You are Kamala and no one else, and within you there is a stillness and sanctuary to which you can retreat at any time and be yourself, just as I can. Few people have that capacity and yet everyone could have it."

Hermann Hesse, Siddhartha (1922), Bantam Books, p. 71

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

meu avô


‎meu avô era um alemão alto

com um cheiro estranho no hálito.
ele permanecia muito ereto
em frente à sua casinha
e sua esposa o odiava
e seus filhos o achavam estranho.
eu tinha seis anos a primeira vez que nos vimos
e ele me deu todas as suas medalhas de guerra.
na segunda vez que nos vimos
ele me deu seu relógio de bolso dourado.
era muito pesado e eu o levei para casa
e dei corda bem forte
e ele parou de funcionar
o que me fez sentir mal.
nunca mais voltei a vê-lo
e meus parentes nunca falavam dele
nem mesmo minha avó
que muito tempo atrás
deixou de viver em sua companhia.
uma vez perguntei por ele
e me disseram
que bebia demais
mas na melhor imagem que guardo dele
ele está muito ereto
em frente a sua casa
e dizendo, "olá, Henry, você
e eu, nós nos
conhecemos".

Charles Bukowski, O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 298

sábado, 13 de outubro de 2012

Sobre "Os detetives selvagens", de Roberto Bolaño



"...quando você está apaixonado por um livro específico (...) você só terá olhos para ele, seja na sala de espera do urologista, na fila do ônibus ou na arquibancada do Pacaembu.

É o caso de 'Os detetives selvagens', de Roberto Bolaño, com o qual vivo um intenso caso de amor atualmente. Nossa relação começou há um mês mais ou menos, em meados de agosto, numa noite estranha aqui relatada numa crônica anterior, não por acaso intitulada 'Os detetives selvagens'. Como toda a história de amor, minha relação com esse livro começou amena, como dois pugilistas que se observam no primeiro round e agora, passado um mês, estamos engalfinhados como dois lutadores de Ultimate Fighting, desses que sangram juntos e fazem confundir o telespectador, que não sabe se assiste a uma luta ou a um coito."

(Tony Belloto, em sua coluna no blog da Companhia das Letras)


"Li 'Os detetives selvagens' em três dias. Durante esses dias só tive três atividades: comer pizza (lendo), ir ao banheiro (lendo) e dormir um pouco (sonhando que lia). Estava passando por um momento horrível na minha vida e a única coisa que queria fazer era ler Bolaño. Ler com desespero. Ler como se em alguma das 622 páginas do livro estivesse escondida a resposta a meus problemas. Como se ler o livro sem parar fosse um encantamento, uma fórmula mágica. Ou uma oração. E funcionou. Saí do livro mais deprimido, mas com uma fé raivosa na literatura e com minha vocação de escritor fortalecida." 

(Juan Pablo Villalobos, para o blog da Companhia das Letras)

anjo louco


quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that.

Torquato Neto (1944-1972)

indigência


Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
E as ruínas darão frutos.

Manoel de Barros

adolescência


quando eu tiver setenta anos 
então vai acabar esta minha adolescência 

vou largar da vida louca 
e terminar minha livre docência 

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

Paulo Leminski (1944-1989)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Los detectives salvajes (II)


Primero: aquí estoy yo, dopado, con los antidepresivos saliéndome hasta por las orejas, recorriendo esta Feria aparentemente tan simpática en donde Hernando García León tiene tantos y tantos lectores y en donde Baca, en las antípodas de García León pero tan beato como él, tiene tantos y tantos lectores y en donde hasta mi viejo amigo Pere Ordóñez tiene algunos lectores y en donde hasta yo, para qué seguir, para qué ir más lejos, tengo también mi cupo de lectores, los reventados, los golpeados, los que tienen en la cabeza pequeñas bombas de litio, ríos de Prozac, lagos de Epaminol, mares muertos de Rohipnol, pozos cegados de Tranquimazín, mis hermanos, los que chupan de mi locura para alimentar su locura.

Roberto Bolaño, Los detectives salvajes. Barcelona: Anagrama, 1998, p. 494-5

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Los detectives salvajes



Cuando Jacinto y yo nos separamos a mí me dio por la poesía. Me puse a leer y a escribir poesía como si eso fuera lo más importante. Antes ya escribía algunos poemitas y creía que leía mucho, pero cuando él se fue me puse a leer y a escribir en serio. El tiempo, que no me sobraba, lo sacaba de donde podía.

Por aquel entonces yo ya había conseguido mi chambita de cajera de un Gigante, gracias que a mi papá habló con un amigo que tenía un amigo que era el encargado del Gigante de la colonia San Rafael. Y María trabajaba de secretaria en una de las oficinas del INBA. Por el día Franz iba a la escuela y me lo iba a buscar una muchachita de quince años que así se ganaba sus pesos y que después me lo llevaba a un parque o lo tenía en casa hasta que yo llegaba del trabajo. Por las noches, después de cenar, María bajaba a mi casa o yo subía y me ponía a leerle los poemas que había escrito aquel día, en el Gigante o mientras se calentava la cena de Franz o la noche anterior, mientras miraba a Franz dormir. La televisión, una mala costumbre que tenía cuando vivía con Jacinto, ya casi sólo la ponía cuando había una noticia bomba y quería enterarme, y ni eso. Lo que hacía, como digo, era sentarme a la mesa, que había cambiado de sitio y ahora estaba junto a la ventana,  y ponerme a leer y a escribir poemas hasta que se me cerraban los ojos de tanto sueño. Llegué a corregir mis poemas hasta diez o quince veces. Cuando veía a Jacinto, se los leía y él me daba su opinión, pero mi lectora de verdad era María. Finalmente pasaba mis poemas a máquina y los guardaba en una carpeta que iba creciendo día tras día, ante mi satisfacción y contento, pues aquello era como la materialización de que mi lucha no era en vano.

Roberto Bolaño, Los detectives salvages (1998), Anagrama, p. 362

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Procuro despir-me do que aprendi

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar
que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu...

Alberto Caeiro
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Amava seu mundo interior,
caos selvagem,
bosque antiquíssimo e adormecido,
sobre cujo silencioso despertar verde-luz
seu coração se erguia

Rainer Maria Rilke

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domingo, 23 de setembro de 2012

Essa minha secura



Adeus, coisas que nunca tive,

dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetive, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus

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Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento

Paulo Leminski, distraídos venceremos (1987), p. 88 e 56

Alberto Caeiro


(ditado pelo poeta no dia da sua morte)


É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver ainda: mais nada.

...

Quando vier a primavera,

Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera
passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância
nenhuma.

...
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exatamente
onde o meu braço
chega - 
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não onde penso.
Só me posso sentar onde estou.
...
A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para ser completo.
...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

...

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), Poemas completos de Alberto Caeiro, Editora Komedi, páginas: 48, 104, 116, 120, 121 e 125