sábado, 15 de dezembro de 2012

Barba ensopada de sangue


Tu fez muitos amigos aqui?

Alguns.

Achei que tu tava meio ermitão.

A vida aqui é normal.

Normal pra ti. Eu sinceramente não entendo por que tu precisa viver enfiado num lugar abandonado desses no meio do inverno enquanto podia estar em Porto Alegre ou até em São Paulo como o teu irmão. Eu acho que tu só tá chateado com a morte do teu pai e vai acabar voltando. Mas tu que sabe da tua vida, claro. Tu é adulto. Sei que tu gosta de ficar sozinho, desde pequenininho tu era desse jeito e sempre respeitei, mas com essa falta de vontade de fazer alguma coisa que preste da tua vida eu nunca concordei não. Vai ficar aqui dando aula de natação pruns gatos-pingados até quando? Sozinho com aquela cachorra nojenta. Ela vai morrer logo. Isso aqui não é lugar pra constituir uma vida. Nunca deixei de achar que essa tua falta de iniciativa é culpa do teu pai, ele que sempre me dizia pra te deixar em paz. Passava a mão na tua cabeça. Deixa o guri estudar educação física. Deixa o guri pedalar e nadar, é o que ele gosta. Tu herdou o pior do teu pai, que não era a garrafa nem os charutos nem a falta de respeito que tinha comigo, mas sim essa noção absurda de que vocês poderiam viver no meio do mato como se vivia mil anos atrás e que só por acaso nasceram no século vinte e um e vivem numa grande cidade onde se podem realizar coisas, criar coisas, ganhar dinheiro, viajar pelo mundo –

Eu nasci no século vinte. O pai também.

– e estudar coisas fascinantes e viver uma vida moderna, interessante, cheia de cultura e aproveitar isso pra ter uma família própria que também vai poder se beneficiar disso tudo e assim por diante. Esse tipo de coisa que os antepassados da gente acham que a gente vai fazer, sabe? Ele não me deixava cobrar isso de ti na tua adolescência e agora tu pensa que deixar a barba crescer numa quitinete de veraneio alugada, mofada e com cheiro de peixe ganhando o suficiente pra pagar a conta de luz é uma vida boa o bastante. Não é como eu vejo. Uma hora tu vai querer casar, vai querer fazer uma casa pra ti. Essa tua namorada nova é de Porto Alegre, não é? Ela quer passar o resto da vida aqui? Duvido que queira. Pretende ficar com ela? Pensa em casar com ela algum dia? Pretende ter filhos? Eles vão ter acesso a uma escola decente neste lugar? Tu me disse que ela é uma guria culta, tá fazendo mestrado. Deve ser uma pessoa com ambição. Eu já vi esse filme antes. Esse filme já passou e tu te dá mal nele.

Daniel Galera. Barba ensopada de sangue. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 282-283

Nenhum comentário: