Tu fez muitos amigos aqui?
Alguns.
Achei que tu tava meio ermitão.
A vida aqui é normal.
Normal pra ti. Eu sinceramente não
entendo por que tu precisa viver enfiado num lugar abandonado desses no meio do
inverno enquanto podia estar em Porto Alegre ou até em São Paulo como o teu irmão.
Eu acho que tu só tá chateado com a morte do teu pai e vai acabar voltando. Mas
tu que sabe da tua vida, claro. Tu é adulto. Sei que tu gosta de ficar sozinho,
desde pequenininho tu era desse jeito e sempre respeitei, mas com essa falta de
vontade de fazer alguma coisa que preste da tua vida eu nunca concordei não. Vai
ficar aqui dando aula de natação pruns gatos-pingados até quando? Sozinho com
aquela cachorra nojenta. Ela vai morrer logo. Isso aqui não é lugar pra
constituir uma vida. Nunca deixei de achar que essa tua falta de iniciativa é
culpa do teu pai, ele que sempre me dizia pra te deixar em paz. Passava a mão
na tua cabeça. Deixa o guri estudar educação física. Deixa o guri pedalar e
nadar, é o que ele gosta. Tu herdou o pior do teu pai, que não era a garrafa
nem os charutos nem a falta de respeito que tinha comigo, mas sim essa noção
absurda de que vocês poderiam viver no meio do mato como se vivia mil anos atrás
e que só por acaso nasceram no século vinte e um e vivem numa grande cidade
onde se podem realizar coisas, criar coisas, ganhar dinheiro, viajar pelo mundo –
Eu nasci no século vinte. O pai
também.
– e estudar coisas fascinantes e viver uma vida moderna, interessante,
cheia de cultura e aproveitar isso pra ter uma família própria que também vai
poder se beneficiar disso tudo e assim por diante. Esse tipo de coisa que os
antepassados da gente acham que a gente vai fazer, sabe? Ele não me deixava
cobrar isso de ti na tua adolescência e agora tu pensa que deixar a barba
crescer numa quitinete de veraneio alugada, mofada e com cheiro de peixe
ganhando o suficiente pra pagar a conta de luz é uma vida boa o bastante. Não é
como eu vejo. Uma hora tu vai querer casar, vai querer fazer uma casa pra ti. Essa
tua namorada nova é de Porto Alegre, não é? Ela quer passar o resto da vida
aqui? Duvido que queira. Pretende ficar com ela? Pensa em casar com ela algum
dia? Pretende ter filhos? Eles vão ter acesso a uma escola decente neste lugar?
Tu me disse que ela é uma guria culta, tá fazendo mestrado. Deve ser uma pessoa
com ambição. Eu já vi esse filme antes. Esse filme já passou e tu te dá mal
nele.
Daniel Galera. Barba ensopada de sangue. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 282-283
Daniel Galera. Barba ensopada de sangue. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 282-283
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