domingo, 30 de outubro de 2011

Um sopro de vida

Eu queria um modo de escrever delicadíssimo, esquizoide, esquivo verdadeiro que me revelasse a mim mesmo a face sem rugas da eternidade. Obcecado pelo desejo de ser feliz eu perdi minha vida.

Movi-me com uma tensão de arco e flecha numa irrealidade de desejos.

(...)

Faz um dia muito bonito. Chove uma chuva muito fina, o céu está escuro e o mar revoltado. As almas esvoaçam no cemitério, os vampiros estão soltos, os morcegos encolhidos nas cavernas. Aconchego de mistério e terror. Se de repente o sol aparecesse eu daria um grito de pasmo e um mundo desabaria e nem daria tempo de todos fugirem da claridade. Os seres que se alimentam das trevas.

Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescindo da realidade porque posso ter tudo através do pensamento.

A realidade não me surpreende. Mas não é verdade; de repente tenho uma tal fome de "coisa acontecer mesmo" que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego em viver da imaginação.

(...)

A palavra é o dejeto do pensamento. Cintila.

Cada livro é sangue, é pus, é excremento, é coração retalhado, é nervos fragmentados, é choque elétrico, é sangue coagulado escorrendo como lava fervendo pela montanha abaixo.

Clarice Lispector, Um sopro de vida (1977/78). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 89, 90, 91, 95, 96.

sábado, 29 de outubro de 2011

Ao Sul de Lugar Nenhum (II)

Bem, Lou não estava mentindo. Fiquei sem vê-lo por algum tempo, inclusive nos finais de semana, e, enquanto isso, eu atravessava uma espécie de inferno pessoal. Estava muito nervoso, atacado dos nervos: um barulhinho qualquer e eu saltava de susto. Eu tinha medo de ir dormir: pesadelo depois de pesadelo, cada um mais terrível do que o anterior. Ficava tudo bem se eu fosse dormir completamente bêbado, aí não acontecia nada, mas se fosse dormir meio bêbado, ou, pior ainda, sóbrio, então os sonhos começavam, sem falar que eu nunca tinha certeza se estava dormindo ou se as coisas estavam acontecendo dentro do quarto, porque, quando dormia, sonhava com o quarto inteiro, os pratos sujos, os ratos, as paredes que se enrugavam por causa da umidade, as calcinhas carimbadas que alguma puta deixou no chão, a torneira vazando, a lua como um projétil lá fora, carros cheios de pessoas sóbrias e bem-alimentadas, faróis brilhando pela janela, tudo, tudo aquilo, e eu em alguma espécie de canto escuro, suando, na escuridão e na sujeira, em meio ao fedor da realidade, o fedor de tudo: aranhas, olhos, senhorias, calçadas, bares, prédios, grama, a ausência de grama, nada daquilo pertencia a você. Os elefantes cor-de-rosa nunca apareciam, mas sim diversos homenzinhos com gestos selvagens ou então um homem enorme e aterrador, que vem estrangulá-lo ou afundar seus dentes na parte de trás do seu pescoço, você deitado de costas chafurdando em seu próprio suor, incapaz de se mover, essa coisa preta, fedorenta e cabeluda está parada ali, em cima de você, em você, em você.

Quando não era isso, era eu ficar sentado durante dias, horas de medo incomunicável, o medo se abrindo no meio do peito como um grande botão em flor, não se podia analisar o que estava acontecendo, imaginar o porquê de tudo aquilo, o que tornava as coisas ainda piores. Horas sentado em uma cadeira no meio de um quarto passam rápidas e impactantes. Cagar ou mijar são esforços tremendos, sem sentido; pentear o cabelo ou escovar os dentes: atos ridículos ou insanos. Cruzar um mar de chamas. Ou servir água em um copo para beber: parece que você não tem direito mesmo a um ato simples como esse. Decidi que estava louco, imprestável, e isso fez com que eu me sentisse sujo. Fui à biblioteca e tentei encontrar livros sobre o que fazia com que as pessoas se sentissem do jeito que eu estava me sentindo, mas os livros não estavam lá, ou, se estavam, eu não podia compreendê-los. Ir até a biblioteca não era nada fácil: todos pareciam tão confortáveis, os bibliotecários, os leitores, todos menos eu. Tive dificuldade até mesmo para usar o banheiro da biblioteca... os vagabundos lá dentro, as bichas me olhando mijar, todos pareciam mais fortes do que eu... despreocupados e seguros.

(...)

A perspectiva do suicídio estava sempre presente, forte, como formigas correndo pelas veias dos pulsos. Suicídio era a única coisa positiva. Todo o resto era negativo. E havia o Lou, feliz, limpando o interior de máquinas de fazer doces para continuar vivo. Ele era mais sábio do que eu.

Charles Bukowski, Ao Sul de Lugar Nenhum: histórias da vida subterrânea (1973). Porto Alegre, L&PM, 2011, p. 181-183.

domingo, 23 de outubro de 2011

Primeiro aluno da classe

Seu segredo é um caracol. O cabelo é bem cortado, os olhos são delicados e atentos. Sua cortês carne de nove anos ainda é transparente. É de uma polidez inata: pega nas coisas sem quebrá-las. Empresta livros para os colegas, ensina a quem lhe pede, não se impacienta com a régua e o esquadro, quando há tanto aluno desvairado. Seu segredo é um caracol. Do qual não esquece um instante. Seu segredo é um caracol que o sustenta. Ele o cria numa caixa de sapato com gentileza e cuidado. Com gentileza diariamente finca-lhe agulha e cordão. Com cuidado adia-lhe atentamente a morte. Seu segredo é um caracol criado com insônia e precisão.

Clarice Lispector, Para não esquecer (1978). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 85

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Reconstituição de uma dama

Nascida no castelo de la Possonnière, no vale do Loire. As pregas na cintura alta, os longos cabelos pouco lavados. Fiava linho. Os bosques do castelo. A lua verde como uma emboscada. Os rouxinóis e o poço. A voz cantando fina. O grande território dividia-se em regiões militares; avermelhados pelo vento os servos escovavam os cavalos. As grandes chaves de ferro. O vento soprava, e na sombra o leito branco. Os cães no pátio: quinze ladravam. O ferreiro e as forjas, fole e bigorna, as forjas martelando. Aproximava-se o galopar com poeira, apeavam. Em torno do poço, ao vento, em guirlandas, as margaridas. Cobre, prata. O tio bispo. A taça de ouro. A visita do diretor espiritual; as mãos cruzadas no regaço. Sua época foi sua vida. Extinta no ano de 1513, sepulta na capela do bosque; cem anos depois os ossos foram transladados, e depois de novo transladados. Até que dela ficou o castelo em que viveu e a bela região do Loire. E no museu obra de anônimo séc. XVI, vaso que um dia pintara, dado ao estudo da arte decorativa de seu tempo.

Clarice Lispector, Para não esquecer (1978). Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 38.

Ao Sul de Lugar Nenhum

Terminamos o café da manhã e demos um passeio pelos arredores. Todo o lugar não tinha mais de cinco ou seis quarteirões. Todo mundo tinha dezessete anos de idade. Ficavam sentados indiferentes e esperavam. Nem todos. Havia alguns turistas, velhos, determinados a aproveitar suas férias. Espiavam ferozmente as vitrines das lojas e caminhavam, batendo os pés contra o pavimento, emitindo raios que anunciavam: tenho dinheiro, temos dinheiro, temos mais dinheiro do que vocês, somos melhores do que vocês, nada nos preocupa, tudo está uma merda, mas nós estamos bem e sabemos como funcionam as coisas, olhem para nós.

Com suas camisas rosas e verdes e azuis e corpos brancos e simétricos apodrecendo e calções listrados, olhos esvaziados de olhar, bocas desbocadas, caminhavam por aí, cheios de cor, como se cores pudessem ressuscitar a morte e transformá-la em vida. Eles eram uma espécie de carnaval da decadência americana, um desfile, e não faziam ideia da atrocidade que infligiam a si mesmos.

Charles Bukowski, Ao Sul de Lugar Nenhum: histórias da vida subterrânea (1973). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 165-6.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Felicidade

Ela se chama Das Dores.

Na verdade Das Dores é como as pessoas a chamam, não sei se é nome, sobrenome ou apelido.

Está agora debruçada na pia enxaguando os pratos e talheres do almoço.

É noite. Não deu para lavar antes.

Hoje é sexta-feira. Jorge vai chegar daqui a pouco e ela está muito feliz.

Das Dores está feliz todos os dias, eu não consigo entender por quê.

Sua casa é pequena e simples. Não tem máquina de lavar, mas o Jorge disse que vai comprar uma das grandes para ela, assim que ele terminar de pagar a televisão. Ela disse a ele não precisa, Jorge, aqui é pouca roupa, eu dou conta, mas o Jorge insistiu e ela disse tudo bem, então.

E sorriu.

Das Dores sorri muito.

Lava os pratos e talheres sorrindo.

A água sai pouca da torneira, porque eles moram no alto de um morro e a pressão é fraca, não tem jeito.

Das Dores é jovem, não tem nem trinta anos, mas parece que tem mais. Peitos caídos, cabelo ensebado, pele encardida, está um pouco acima do peso, mas quando ela se olha no espelho do guarda-roupa, acha-se bonita. Jorge gosta. Até elogia.

Toda sexta-feira ela prepara um jantar especial para ela e o Jorge. Ele traz um vinho tinto suave, docinho, do jeito que ela gosta. Semana passada ele comprou duas taças no supermercado e fez uma surpresa para ela: encheu-as de vinho e foi até o quarto, enquanto ela se penteava, levando também, além do vinho, um prato com petiscos (salsicha, queijo e azeitona). Ela disse que loucura, Jorge, você gastou dinheiro com esses copos chiques, não precisava, mas o Jorge nem ligou. Foi logo beijando a sua boca, e os dois se jogaram na cama.

Toda sexta-feira eles fazem amor. É muito bom, ela gosta do Jorge, ele é carinhoso e fala que ela é bonita. Nunca foram a um motel, mas o Jorge disse que um dia vai levá-la, e ela fica imaginando como deve ser.

Ela está agora preparando a lasanha para o jantar. É o prato que o Jorge mais gosta, e ela também.

Hoje ela decidiu colocar um pouco mais de presunto na lasanha (na verdade, não é presunto, mas algo parecido, mais barato. Só que, para ela, é tudo a mesma coisa, então ela prefere chamar de presunto, que é uma palavra mais bonita. Presuuunnnto, ela gosta de dizer baixinho, sorrindo, quando volta para casa com as compras).

O molho está ótimo, ela pensa, enquanto prepara a lasanha ouvindo “A Hora do Brasil”.

Daqui a pouco o Jorge chega e os dois vão tomar banho.

Ela ensaboa o Jorge toda sexta-feira, para tirar o cheiro que fica grudado na pele dele.

É que o Jorge trabalha no serviço de limpeza urbana, recolhendo os lixos das casas.

Jorge também é jovem, tem trinta e um anos, mas gosta de se cuidar, por isso parece ser mais novo do que Das Dores, que é um pouco desleixada.

Ele é musculoso de tanto levantar sacos de lixo e correr atrás do caminhão da limpeza pela cidade, mas seu cheiro não é bom, por isso ela faz questão de ensaboá-lo na sexta-feira e de passar bastante loção no seu corpo, porque é o dia deles jantarem juntos e fazerem amor.

Ela prefere “fazer amor”, não gosta das palavras que o Jorge usa quando estão na cama, vou te comer, vamos trepar, coisas assim, de animal.

Das Dores não entende nada do que ela ouve na “Hora do Brasil”.

Não sabe dos gastos milionários do Governo com estádios de futebol, enquanto os professores estão em greve.

Das Dores nem pensa no seu trabalho, que recomeça segunda-feira, pregando solas de sapatos, milhares de solas, nada além de solas, solas, solas e mais solas, o dia inteiro, até o crepúsculo.

Ela gosta da palavra crepúsculo.

Ela leu isso em algum lugar e sua amiga Josefa lhe explicou o que era: Pôr-do-sol.

Ficou boba.

Depois disso, ao sair da fábrica de sapatos, ela trocou seu trajeto só para passar por uma rua que lhe permitia ver o pôr-do-sol.

E ela parava e admirava...

Ela gosta das cores do crepúsculo.

Ela está agora olhando pela janela.

Noite estrelada, muito calor.

Escuta alguns tiros lá embaixo, mas nem liga.

Não pensa em nada, vive o instante.

Das Dores estudou na escola pública do bairro, aprendeu a ler, mas não entende quase nada do que lê, somente avisos bem simples como Cuidado: chão molhado, Caixa fechado, Seja bem-vindo à Casa do Senhor, etc. Uma vez tentou ler o resumo de uma novela, mas só entendeu algumas palavras isoladas, que ela guardou na memória: luxo, praia, motel, patife, vagabunda, aborto, drogas.

Jorge estudou mais tempo que Das Dores, em uma escola pública melhor. Jorge até pega livro na Biblioteca. Das Dores fica impressionada com a inteligência do Jorge. Ele é esperto, sabe das coisas.

Jorge tem até uma caixa de papelão onde guarda os livros que ele encontra no lixo, a maioria com um título que Das Dores acha muito estranho: TEX. O cheiro dos livros é que não é bom, mas Das Dores nem liga, porque ela adora ver o Jorge feliz, e quando ele pega um desses livrinhos para ler, ele parece muito feliz.

Jorge chega com o vinho.

E a surpresa da noite é que o vinho não é de uva, mas de pêssego, fruta que Das Dores nunca experimentou.

Das Dores sorri e abraça Jorge com carinho. O cheiro dele não está nada bom.

Tomam banho, fazem amor e Das Dores, com uma taça de vinho de pêssego na mão, coloca a lasanha para assar.

(Na verdade não é bem um vinho, mas para Das Dores isso não importa).

Jorge liga o rádio e fica olhando as luzes do morro pela janela.

Outro tiro.

Ele se assusta, vira para Das Dores e os dois começam a rir.

Você está tão bonita hoje, Das Dores, ele diz.

Você também, Jorge.

Acho que já entendi por que Das Dores está feliz todos os dias.

Flávio Marcus da Silva

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Onde estivestes de noite

Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase paupável do que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir.

Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranquila alegria. É que não estou habituada a não precisar de meu próprio consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.

Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.

Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com esta pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.

Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei - e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso ao que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.

Clarice Lispector, Onde estivestes de noite (1974). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 86-7.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A Via Crucis do corpo (II)

Pois a filha teve gangrena na perna e tiveram que amputá-la. Essa Jandira, de dezessete anos, fogosa que nem potro novo e de cabelos belos, estava noiva. Mal o noivo viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não percebeu que era patética, pois bem, o noivo teve coragem de simplesmente desmanchar sem remorso o noivado, que aleijada ele não queria. Todos, inclusive a mãe sofrida da moça, imploraram ao noivo que fingisse ainda amá-la, o que - diziam-lhe - não era tão penoso porque seria a curto prazo: é que a noiva tinha vida a curto prazo.

E daí a três meses - como se cumprisse promessa de não pesar nas débeis ideias do noivo - daí a três meses morreu, linda, de cabelos soltos, inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não. Não sei como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei. Quem sabe se não tão escura. Quem sabe se é um deslumbramento. A morte, quero dizer.

Clarice Lispector, A Via Crucis do corpo (1974). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 57-8.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A Via Crucis do corpo

Ele chorou um pouco. Era um belo homem, com barba por fazer e abatidíssimo. Via-se que havia fracassado. Como todos nós. Ele me perguntou se podia ler para mim um poema. Eu disse que queria ouvir. Ele abriu uma sacola, tirou de dentro um caderno grosso, pôs-se a rir, ao abrir as folhas.

Então leu o poema. Era simplesmente uma beleza. Misturava palavrões com as maiores delicadezas. Oh Cláudio - tinha eu vontade de gritar - nós todos somos fracassados, nós todos vamos morrer um dia! Quem? mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira.

(...)

Fiquei fumando. Meu cachorro no escuro me olhava.

Isso foi ontem, sábado. Hoje é domingo, 12 de maio, Dia das mães. Como é que posso ser mãe para este homem? pergunto-me e não há resposta.

Não há resposta para nada.

Fui me deitar. Eu tinha morrido.

Clarice Lispector, A Via Crucis do corpo (1974). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38 e 40.

sábado, 1 de outubro de 2011

A cidade sitiada

Ah, se Ana visse como S. Geraldo progredia! Já então Lucrécia tentava gostar daquelas mudanças, com medo de perder pé na cidade e de não alcançá-la mais. Comiam em silêncio. A esposa insinuante lisonjeando-o e lisonjeando servilmente as coisas: está bom, hem? Mateus Correia respondia ofendido: naturalmente, ora! O que a emudecia, fazendo-a mesmo corar. Tentava de outro modo então:

- Até que não gostamos de jantar fora, não é?

- Isso pode ser você, eu não! respondeu ele sarcástico, humilhado. Não gostar, destruiria a ordem superior? O marido dava-lhe mesmo a entender que ele indo só ao restaurante tudo era diferente, convencendo-a de tal forma que parecia a Lucrécia bastar sua presença para que as coisas se camuflassem: sofrendo, ela interrompia: olha uma estrela cadente! dizia bajulando-o, e era mentira, quem sabe por quê. De volta, na cidade escura, como era tempestuosa e quente a felicidade.

Nesse tempo de felicidade vivia cheia de pequenas rugas se formando, acompanhando modas em figurinos franceses, misturada a essa poeirenta época que aspirava com sufocação à posteridade - enquanto se usavam formas úteis de pensamentos: "na teoria é ótimo mas na prática falha", dizia-se muito, e à luz de um poste passava o carro em disparada.

No dia seguinte, à tardinha, finalmente cessara a miúda chuva de duas semanas.

A cidade próspera rutilava. Nas calçadas alguns homens ergueram caras indecisas: o céu estava claro, quase verde, quase neutro... E sob a agudez do incolor elevavam-se os modestos telhados de S. Geraldo. Por um instante raro, às derradeiras gotas iluminadas da chuva, a cidade estava unânime. Pessoas olhavam a piscar, reconhecendo a constância das coisas. Os rostos espantados como se tivessem sido avisados de que a hora chegara. De voltar as costas à cidade madura, e ir para sempre embora.

Também se empregava muito a palavra "sociedade", naqueles tempos. "A sociedade exige tudo e não dá nada, o senhor não acha?", dizia-se muito.

- A sociedade exige tudo e não dá nada, disse Mateus no sábado de manhã, no meio da conversa que ambos pareciam procurar há tanto tempo.

De fato gostariam de enfim se defrontar. E quando por acaso começaram a falar de maridos traírem esposas, os dois agarraram-se com reconhecimento à oportunidade. Ela se acomodou com a costura no regaço.

- Não é considerado nenhum crime, disse ele, assim é feita a sociedade, acrescentou com orgulho, os olhos úmidos de emoção porque ele era muito bom.

- É sim, disse ela atenta.

- Assim é feita a sociedade, repetiu o homem com precaução. Não é crime um homem ter algum interesse pelas mulheres mas é crime a esposa se interessar por outro homem. - Como ele tinha bom senso e lógica! ambos se mantinham em torno do ponto neutro, nenhum querendo arriscar-se antes do outro.

- Pois é.

- Nunca desonrei o lar por mim criado, disse o marido e ambos se fitaram com receio de que ele se tivesse excedido - Mateus usara alguma palavra errada. Certo cansaço tomou-a mesmo, ela quase deslizava para uma sinceridade que tornaria insuportável a conversa superior de ambos. Fixava a toalha da mesa, alisava uma prega.

- Nunca desonrei o lar criado por mim! repetiu o homem de repente muito alto, como se mudando a disposição das mesmas palavras ele próprio se ajeitasse melhor.

Que insistência, pensava a esposa. Ah, se tivesse alguém a quem contar depois, como seria verdadeira de repente e como faria mal àquele homem que ela desconhecia mas sabia como ferir.

Desejava que o marido se interrompesse porém Mateus agora irreprimível prosseguia explicando seu caráter, seus princípios morais e qual o seu modo de tratar as mulheres - embora tudo isso não o revelasse em nenhum momento. Ela enrolava a ponta da toalha, sonhadora.

- Lucrécia, disse o marido com certa angústia, você não está ouvindo!

- Estou sim, você dizia que seria delicado com as mulheres em qualquer ocasião.

- Sim, em qualquer ocasião, repetiu Mateus decepcionado...

Calaram-se. Ela olhava o chão sem interesse. Ele, ao contrário, excitado pela nobreza com que se descrevera, fitava avidamente as mãos, inquieto e cheio de planos para o futuro. De fato ele percebia que falar era o seu melhor modo de pensar e que era bom ser escutado por uma mulher. Procurou reatar a conversa mas Lucrécia fugia com um ar que lhe pareceu tranquilo e triste.

Olhando-a Mateus teria talvez descoberto que no fundo sempre a temera. Nada havia de mais perigoso do que uma mulher fria. E Lucrécia era casta como um peixe. Pela primeira vez ele pareceu notar no rosto da esposa certo abandono sem socorro. Desviou o olhar com bondade.

- E você, que planos tem? perguntou para agradá-la, esquecendo que os próprios ele os pensara apenas.

- Como? despertou ela, como planos? quais? que é que você está dizendo?

Ele mesmo se assustou sem saber por quê.

- Nada... ora, Lucrécia, planos, programas, ora...

- Como programas? insistia a esposa com ironia. Que é que você quer dizer com isso, você tem algum plano quanto a nós?

- Que planos quanto a nós?

- Mas, Mateus, você não falou em planos quanto a nós?

- Não, não era quanto a nós... quer dizer, sim, mas não sei o que você está inventando, era tudo para bem...

- Para bem!

- Sim, para bem! por que havia de ser pra mal, meu Deus!

- Mas quem falou em mal? estivemos então mal, falou ela estridente.

- Não, não era isso... digo planos para você...

- ...você acha que devo ter planos separados dos seus?

- Não, por Deus, eu também tenho os meus mas você...

- ...separados dos meus?

- Oh, meu Deus!

- Quais são os seus, Mateus?

Assim arguido ele não saberia dizer quais eram. E olhava para a frente incomunicável, parado com teimosia no caminho.

- São os meus, disse com altivez e sofrimento.

- E pode-se saber por acaso?

- Progredir, disse afinal Mateus Correia com esforço e vergonha.

Ela abriu a boca e fitou-o com enorme espanto.

Passado um momento, toda a casa tomou sua posição na rua, e, vencida dentro da sala de jantar, ela disse:

- Sim, Mateus.

- Você não acha? animou-se ele, e, sem que ela soubesse que o marido morreria do coração, tinha receio de sua alegria. - E não pense que é coisa no ar, tenho tudo escrito na cabeça, hem? que é que você acha, hem?

- De quê?

- Mas do que eu disse, que diabo, Lucrécia! exclamou o lutador ferido.

- Como é que eu posso saber o que você disse, murmurou cheia de cólera e desesperança...

Foi a única vez em que se defrontaram.

Clarice Lispector, A cidade sitiada (1949). 3ª ed. Rio de janeiro: Sabiá, 1971, p. 135-139