terça-feira, 18 de outubro de 2011

Felicidade

Ela se chama Das Dores.

Na verdade Das Dores é como as pessoas a chamam, não sei se é nome, sobrenome ou apelido.

Está agora debruçada na pia enxaguando os pratos e talheres do almoço.

É noite. Não deu para lavar antes.

Hoje é sexta-feira. Jorge vai chegar daqui a pouco e ela está muito feliz.

Das Dores está feliz todos os dias, eu não consigo entender por quê.

Sua casa é pequena e simples. Não tem máquina de lavar, mas o Jorge disse que vai comprar uma das grandes para ela, assim que ele terminar de pagar a televisão. Ela disse a ele não precisa, Jorge, aqui é pouca roupa, eu dou conta, mas o Jorge insistiu e ela disse tudo bem, então.

E sorriu.

Das Dores sorri muito.

Lava os pratos e talheres sorrindo.

A água sai pouca da torneira, porque eles moram no alto de um morro e a pressão é fraca, não tem jeito.

Das Dores é jovem, não tem nem trinta anos, mas parece que tem mais. Peitos caídos, cabelo ensebado, pele encardida, está um pouco acima do peso, mas quando ela se olha no espelho do guarda-roupa, acha-se bonita. Jorge gosta. Até elogia.

Toda sexta-feira ela prepara um jantar especial para ela e o Jorge. Ele traz um vinho tinto suave, docinho, do jeito que ela gosta. Semana passada ele comprou duas taças no supermercado e fez uma surpresa para ela: encheu-as de vinho e foi até o quarto, enquanto ela se penteava, levando também, além do vinho, um prato com petiscos (salsicha, queijo e azeitona). Ela disse que loucura, Jorge, você gastou dinheiro com esses copos chiques, não precisava, mas o Jorge nem ligou. Foi logo beijando a sua boca, e os dois se jogaram na cama.

Toda sexta-feira eles fazem amor. É muito bom, ela gosta do Jorge, ele é carinhoso e fala que ela é bonita. Nunca foram a um motel, mas o Jorge disse que um dia vai levá-la, e ela fica imaginando como deve ser.

Ela está agora preparando a lasanha para o jantar. É o prato que o Jorge mais gosta, e ela também.

Hoje ela decidiu colocar um pouco mais de presunto na lasanha (na verdade, não é presunto, mas algo parecido, mais barato. Só que, para ela, é tudo a mesma coisa, então ela prefere chamar de presunto, que é uma palavra mais bonita. Presuuunnnto, ela gosta de dizer baixinho, sorrindo, quando volta para casa com as compras).

O molho está ótimo, ela pensa, enquanto prepara a lasanha ouvindo “A Hora do Brasil”.

Daqui a pouco o Jorge chega e os dois vão tomar banho.

Ela ensaboa o Jorge toda sexta-feira, para tirar o cheiro que fica grudado na pele dele.

É que o Jorge trabalha no serviço de limpeza urbana, recolhendo os lixos das casas.

Jorge também é jovem, tem trinta e um anos, mas gosta de se cuidar, por isso parece ser mais novo do que Das Dores, que é um pouco desleixada.

Ele é musculoso de tanto levantar sacos de lixo e correr atrás do caminhão da limpeza pela cidade, mas seu cheiro não é bom, por isso ela faz questão de ensaboá-lo na sexta-feira e de passar bastante loção no seu corpo, porque é o dia deles jantarem juntos e fazerem amor.

Ela prefere “fazer amor”, não gosta das palavras que o Jorge usa quando estão na cama, vou te comer, vamos trepar, coisas assim, de animal.

Das Dores não entende nada do que ela ouve na “Hora do Brasil”.

Não sabe dos gastos milionários do Governo com estádios de futebol, enquanto os professores estão em greve.

Das Dores nem pensa no seu trabalho, que recomeça segunda-feira, pregando solas de sapatos, milhares de solas, nada além de solas, solas, solas e mais solas, o dia inteiro, até o crepúsculo.

Ela gosta da palavra crepúsculo.

Ela leu isso em algum lugar e sua amiga Josefa lhe explicou o que era: Pôr-do-sol.

Ficou boba.

Depois disso, ao sair da fábrica de sapatos, ela trocou seu trajeto só para passar por uma rua que lhe permitia ver o pôr-do-sol.

E ela parava e admirava...

Ela gosta das cores do crepúsculo.

Ela está agora olhando pela janela.

Noite estrelada, muito calor.

Escuta alguns tiros lá embaixo, mas nem liga.

Não pensa em nada, vive o instante.

Das Dores estudou na escola pública do bairro, aprendeu a ler, mas não entende quase nada do que lê, somente avisos bem simples como Cuidado: chão molhado, Caixa fechado, Seja bem-vindo à Casa do Senhor, etc. Uma vez tentou ler o resumo de uma novela, mas só entendeu algumas palavras isoladas, que ela guardou na memória: luxo, praia, motel, patife, vagabunda, aborto, drogas.

Jorge estudou mais tempo que Das Dores, em uma escola pública melhor. Jorge até pega livro na Biblioteca. Das Dores fica impressionada com a inteligência do Jorge. Ele é esperto, sabe das coisas.

Jorge tem até uma caixa de papelão onde guarda os livros que ele encontra no lixo, a maioria com um título que Das Dores acha muito estranho: TEX. O cheiro dos livros é que não é bom, mas Das Dores nem liga, porque ela adora ver o Jorge feliz, e quando ele pega um desses livrinhos para ler, ele parece muito feliz.

Jorge chega com o vinho.

E a surpresa da noite é que o vinho não é de uva, mas de pêssego, fruta que Das Dores nunca experimentou.

Das Dores sorri e abraça Jorge com carinho. O cheiro dele não está nada bom.

Tomam banho, fazem amor e Das Dores, com uma taça de vinho de pêssego na mão, coloca a lasanha para assar.

(Na verdade não é bem um vinho, mas para Das Dores isso não importa).

Jorge liga o rádio e fica olhando as luzes do morro pela janela.

Outro tiro.

Ele se assusta, vira para Das Dores e os dois começam a rir.

Você está tão bonita hoje, Das Dores, ele diz.

Você também, Jorge.

Acho que já entendi por que Das Dores está feliz todos os dias.

Flávio Marcus da Silva

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