sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Reconstituição de uma dama

Nascida no castelo de la Possonnière, no vale do Loire. As pregas na cintura alta, os longos cabelos pouco lavados. Fiava linho. Os bosques do castelo. A lua verde como uma emboscada. Os rouxinóis e o poço. A voz cantando fina. O grande território dividia-se em regiões militares; avermelhados pelo vento os servos escovavam os cavalos. As grandes chaves de ferro. O vento soprava, e na sombra o leito branco. Os cães no pátio: quinze ladravam. O ferreiro e as forjas, fole e bigorna, as forjas martelando. Aproximava-se o galopar com poeira, apeavam. Em torno do poço, ao vento, em guirlandas, as margaridas. Cobre, prata. O tio bispo. A taça de ouro. A visita do diretor espiritual; as mãos cruzadas no regaço. Sua época foi sua vida. Extinta no ano de 1513, sepulta na capela do bosque; cem anos depois os ossos foram transladados, e depois de novo transladados. Até que dela ficou o castelo em que viveu e a bela região do Loire. E no museu obra de anônimo séc. XVI, vaso que um dia pintara, dado ao estudo da arte decorativa de seu tempo.

Clarice Lispector, Para não esquecer (1978). Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 38.

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