domingo, 30 de outubro de 2011

Um sopro de vida

Eu queria um modo de escrever delicadíssimo, esquizoide, esquivo verdadeiro que me revelasse a mim mesmo a face sem rugas da eternidade. Obcecado pelo desejo de ser feliz eu perdi minha vida.

Movi-me com uma tensão de arco e flecha numa irrealidade de desejos.

(...)

Faz um dia muito bonito. Chove uma chuva muito fina, o céu está escuro e o mar revoltado. As almas esvoaçam no cemitério, os vampiros estão soltos, os morcegos encolhidos nas cavernas. Aconchego de mistério e terror. Se de repente o sol aparecesse eu daria um grito de pasmo e um mundo desabaria e nem daria tempo de todos fugirem da claridade. Os seres que se alimentam das trevas.

Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescindo da realidade porque posso ter tudo através do pensamento.

A realidade não me surpreende. Mas não é verdade; de repente tenho uma tal fome de "coisa acontecer mesmo" que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego em viver da imaginação.

(...)

A palavra é o dejeto do pensamento. Cintila.

Cada livro é sangue, é pus, é excremento, é coração retalhado, é nervos fragmentados, é choque elétrico, é sangue coagulado escorrendo como lava fervendo pela montanha abaixo.

Clarice Lispector, Um sopro de vida (1977/78). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 89, 90, 91, 95, 96.

Nenhum comentário: