sábado, 1 de outubro de 2011

A cidade sitiada

Ah, se Ana visse como S. Geraldo progredia! Já então Lucrécia tentava gostar daquelas mudanças, com medo de perder pé na cidade e de não alcançá-la mais. Comiam em silêncio. A esposa insinuante lisonjeando-o e lisonjeando servilmente as coisas: está bom, hem? Mateus Correia respondia ofendido: naturalmente, ora! O que a emudecia, fazendo-a mesmo corar. Tentava de outro modo então:

- Até que não gostamos de jantar fora, não é?

- Isso pode ser você, eu não! respondeu ele sarcástico, humilhado. Não gostar, destruiria a ordem superior? O marido dava-lhe mesmo a entender que ele indo só ao restaurante tudo era diferente, convencendo-a de tal forma que parecia a Lucrécia bastar sua presença para que as coisas se camuflassem: sofrendo, ela interrompia: olha uma estrela cadente! dizia bajulando-o, e era mentira, quem sabe por quê. De volta, na cidade escura, como era tempestuosa e quente a felicidade.

Nesse tempo de felicidade vivia cheia de pequenas rugas se formando, acompanhando modas em figurinos franceses, misturada a essa poeirenta época que aspirava com sufocação à posteridade - enquanto se usavam formas úteis de pensamentos: "na teoria é ótimo mas na prática falha", dizia-se muito, e à luz de um poste passava o carro em disparada.

No dia seguinte, à tardinha, finalmente cessara a miúda chuva de duas semanas.

A cidade próspera rutilava. Nas calçadas alguns homens ergueram caras indecisas: o céu estava claro, quase verde, quase neutro... E sob a agudez do incolor elevavam-se os modestos telhados de S. Geraldo. Por um instante raro, às derradeiras gotas iluminadas da chuva, a cidade estava unânime. Pessoas olhavam a piscar, reconhecendo a constância das coisas. Os rostos espantados como se tivessem sido avisados de que a hora chegara. De voltar as costas à cidade madura, e ir para sempre embora.

Também se empregava muito a palavra "sociedade", naqueles tempos. "A sociedade exige tudo e não dá nada, o senhor não acha?", dizia-se muito.

- A sociedade exige tudo e não dá nada, disse Mateus no sábado de manhã, no meio da conversa que ambos pareciam procurar há tanto tempo.

De fato gostariam de enfim se defrontar. E quando por acaso começaram a falar de maridos traírem esposas, os dois agarraram-se com reconhecimento à oportunidade. Ela se acomodou com a costura no regaço.

- Não é considerado nenhum crime, disse ele, assim é feita a sociedade, acrescentou com orgulho, os olhos úmidos de emoção porque ele era muito bom.

- É sim, disse ela atenta.

- Assim é feita a sociedade, repetiu o homem com precaução. Não é crime um homem ter algum interesse pelas mulheres mas é crime a esposa se interessar por outro homem. - Como ele tinha bom senso e lógica! ambos se mantinham em torno do ponto neutro, nenhum querendo arriscar-se antes do outro.

- Pois é.

- Nunca desonrei o lar por mim criado, disse o marido e ambos se fitaram com receio de que ele se tivesse excedido - Mateus usara alguma palavra errada. Certo cansaço tomou-a mesmo, ela quase deslizava para uma sinceridade que tornaria insuportável a conversa superior de ambos. Fixava a toalha da mesa, alisava uma prega.

- Nunca desonrei o lar criado por mim! repetiu o homem de repente muito alto, como se mudando a disposição das mesmas palavras ele próprio se ajeitasse melhor.

Que insistência, pensava a esposa. Ah, se tivesse alguém a quem contar depois, como seria verdadeira de repente e como faria mal àquele homem que ela desconhecia mas sabia como ferir.

Desejava que o marido se interrompesse porém Mateus agora irreprimível prosseguia explicando seu caráter, seus princípios morais e qual o seu modo de tratar as mulheres - embora tudo isso não o revelasse em nenhum momento. Ela enrolava a ponta da toalha, sonhadora.

- Lucrécia, disse o marido com certa angústia, você não está ouvindo!

- Estou sim, você dizia que seria delicado com as mulheres em qualquer ocasião.

- Sim, em qualquer ocasião, repetiu Mateus decepcionado...

Calaram-se. Ela olhava o chão sem interesse. Ele, ao contrário, excitado pela nobreza com que se descrevera, fitava avidamente as mãos, inquieto e cheio de planos para o futuro. De fato ele percebia que falar era o seu melhor modo de pensar e que era bom ser escutado por uma mulher. Procurou reatar a conversa mas Lucrécia fugia com um ar que lhe pareceu tranquilo e triste.

Olhando-a Mateus teria talvez descoberto que no fundo sempre a temera. Nada havia de mais perigoso do que uma mulher fria. E Lucrécia era casta como um peixe. Pela primeira vez ele pareceu notar no rosto da esposa certo abandono sem socorro. Desviou o olhar com bondade.

- E você, que planos tem? perguntou para agradá-la, esquecendo que os próprios ele os pensara apenas.

- Como? despertou ela, como planos? quais? que é que você está dizendo?

Ele mesmo se assustou sem saber por quê.

- Nada... ora, Lucrécia, planos, programas, ora...

- Como programas? insistia a esposa com ironia. Que é que você quer dizer com isso, você tem algum plano quanto a nós?

- Que planos quanto a nós?

- Mas, Mateus, você não falou em planos quanto a nós?

- Não, não era quanto a nós... quer dizer, sim, mas não sei o que você está inventando, era tudo para bem...

- Para bem!

- Sim, para bem! por que havia de ser pra mal, meu Deus!

- Mas quem falou em mal? estivemos então mal, falou ela estridente.

- Não, não era isso... digo planos para você...

- ...você acha que devo ter planos separados dos seus?

- Não, por Deus, eu também tenho os meus mas você...

- ...separados dos meus?

- Oh, meu Deus!

- Quais são os seus, Mateus?

Assim arguido ele não saberia dizer quais eram. E olhava para a frente incomunicável, parado com teimosia no caminho.

- São os meus, disse com altivez e sofrimento.

- E pode-se saber por acaso?

- Progredir, disse afinal Mateus Correia com esforço e vergonha.

Ela abriu a boca e fitou-o com enorme espanto.

Passado um momento, toda a casa tomou sua posição na rua, e, vencida dentro da sala de jantar, ela disse:

- Sim, Mateus.

- Você não acha? animou-se ele, e, sem que ela soubesse que o marido morreria do coração, tinha receio de sua alegria. - E não pense que é coisa no ar, tenho tudo escrito na cabeça, hem? que é que você acha, hem?

- De quê?

- Mas do que eu disse, que diabo, Lucrécia! exclamou o lutador ferido.

- Como é que eu posso saber o que você disse, murmurou cheia de cólera e desesperança...

Foi a única vez em que se defrontaram.

Clarice Lispector, A cidade sitiada (1949). 3ª ed. Rio de janeiro: Sabiá, 1971, p. 135-139

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