Ah, se Ana visse como S. Geraldo progredia! Já então Lucrécia tentava gostar daquelas mudanças, com medo de perder pé na cidade e de não alcançá-la mais. Comiam em silêncio. A esposa insinuante lisonjeando-o e lisonjeando servilmente as coisas: está bom, hem? Mateus Correia respondia ofendido: naturalmente, ora! O que a emudecia, fazendo-a mesmo corar. Tentava de outro modo então:
- Até que não gostamos de jantar fora, não é?
- Isso pode ser você, eu não! respondeu ele sarcástico, humilhado. Não gostar, destruiria a ordem superior? O marido dava-lhe mesmo a entender que ele indo só ao restaurante tudo era diferente, convencendo-a de tal forma que parecia a Lucrécia bastar sua presença para que as coisas se camuflassem: sofrendo, ela interrompia: olha uma estrela cadente! dizia bajulando-o, e era mentira, quem sabe por quê. De volta, na cidade escura, como era tempestuosa e quente a felicidade.
Nesse tempo de felicidade vivia cheia de pequenas rugas se formando, acompanhando modas em figurinos franceses, misturada a essa poeirenta época que aspirava com sufocação à posteridade - enquanto se usavam formas úteis de pensamentos: "na teoria é ótimo mas na prática falha", dizia-se muito, e à luz de um poste passava o carro em disparada.
No dia seguinte, à tardinha, finalmente cessara a miúda chuva de duas semanas.
A cidade próspera rutilava. Nas calçadas alguns homens ergueram caras indecisas: o céu estava claro, quase verde, quase neutro... E sob a agudez do incolor elevavam-se os modestos telhados de S. Geraldo. Por um instante raro, às derradeiras gotas iluminadas da chuva, a cidade estava unânime. Pessoas olhavam a piscar, reconhecendo a constância das coisas. Os rostos espantados como se tivessem sido avisados de que a hora chegara. De voltar as costas à cidade madura, e ir para sempre embora.
Também se empregava muito a palavra "sociedade", naqueles tempos. "A sociedade exige tudo e não dá nada, o senhor não acha?", dizia-se muito.
- A sociedade exige tudo e não dá nada, disse Mateus no sábado de manhã, no meio da conversa que ambos pareciam procurar há tanto tempo.
De fato gostariam de enfim se defrontar. E quando por acaso começaram a falar de maridos traírem esposas, os dois agarraram-se com reconhecimento à oportunidade. Ela se acomodou com a costura no regaço.
- Não é considerado nenhum crime, disse ele, assim é feita a sociedade, acrescentou com orgulho, os olhos úmidos de emoção porque ele era muito bom.
- É sim, disse ela atenta.
- Assim é feita a sociedade, repetiu o homem com precaução. Não é crime um homem ter algum interesse pelas mulheres mas é crime a esposa se interessar por outro homem. - Como ele tinha bom senso e lógica! ambos se mantinham em torno do ponto neutro, nenhum querendo arriscar-se antes do outro.
- Pois é.
- Nunca desonrei o lar por mim criado, disse o marido e ambos se fitaram com receio de que ele se tivesse excedido - Mateus usara alguma palavra errada. Certo cansaço tomou-a mesmo, ela quase deslizava para uma sinceridade que tornaria insuportável a conversa superior de ambos. Fixava a toalha da mesa, alisava uma prega.
- Nunca desonrei o lar criado por mim! repetiu o homem de repente muito alto, como se mudando a disposição das mesmas palavras ele próprio se ajeitasse melhor.
Que insistência, pensava a esposa. Ah, se tivesse alguém a quem contar depois, como seria verdadeira de repente e como faria mal àquele homem que ela desconhecia mas sabia como ferir.
Desejava que o marido se interrompesse porém Mateus agora irreprimível prosseguia explicando seu caráter, seus princípios morais e qual o seu modo de tratar as mulheres - embora tudo isso não o revelasse em nenhum momento. Ela enrolava a ponta da toalha, sonhadora.
- Lucrécia, disse o marido com certa angústia, você não está ouvindo!
- Estou sim, você dizia que seria delicado com as mulheres em qualquer ocasião.
- Sim, em qualquer ocasião, repetiu Mateus decepcionado...
Calaram-se. Ela olhava o chão sem interesse. Ele, ao contrário, excitado pela nobreza com que se descrevera, fitava avidamente as mãos, inquieto e cheio de planos para o futuro. De fato ele percebia que falar era o seu melhor modo de pensar e que era bom ser escutado por uma mulher. Procurou reatar a conversa mas Lucrécia fugia com um ar que lhe pareceu tranquilo e triste.
Olhando-a Mateus teria talvez descoberto que no fundo sempre a temera. Nada havia de mais perigoso do que uma mulher fria. E Lucrécia era casta como um peixe. Pela primeira vez ele pareceu notar no rosto da esposa certo abandono sem socorro. Desviou o olhar com bondade.
- E você, que planos tem? perguntou para agradá-la, esquecendo que os próprios ele os pensara apenas.
- Como? despertou ela, como planos? quais? que é que você está dizendo?
Ele mesmo se assustou sem saber por quê.
- Nada... ora, Lucrécia, planos, programas, ora...
- Como programas? insistia a esposa com ironia. Que é que você quer dizer com isso, você tem algum plano quanto a nós?
- Que planos quanto a nós?
- Mas, Mateus, você não falou em planos quanto a nós?
- Não, não era quanto a nós... quer dizer, sim, mas não sei o que você está inventando, era tudo para bem...
- Para bem!
- Sim, para bem! por que havia de ser pra mal, meu Deus!
- Mas quem falou em mal? estivemos então mal, falou ela estridente.
- Não, não era isso... digo planos para você...
- ...você acha que devo ter planos separados dos seus?
- Não, por Deus, eu também tenho os meus mas você...
- ...separados dos meus?
- Oh, meu Deus!
- Quais são os seus, Mateus?
Assim arguido ele não saberia dizer quais eram. E olhava para a frente incomunicável, parado com teimosia no caminho.
- São os meus, disse com altivez e sofrimento.
- E pode-se saber por acaso?
- Progredir, disse afinal Mateus Correia com esforço e vergonha.
Ela abriu a boca e fitou-o com enorme espanto.
Passado um momento, toda a casa tomou sua posição na rua, e, vencida dentro da sala de jantar, ela disse:
- Sim, Mateus.
- Você não acha? animou-se ele, e, sem que ela soubesse que o marido morreria do coração, tinha receio de sua alegria. - E não pense que é coisa no ar, tenho tudo escrito na cabeça, hem? que é que você acha, hem?
- De quê?
- Mas do que eu disse, que diabo, Lucrécia! exclamou o lutador ferido.
- Como é que eu posso saber o que você disse, murmurou cheia de cólera e desesperança...
Foi a única vez em que se defrontaram.
Clarice Lispector, A cidade sitiada (1949). 3ª ed. Rio de janeiro: Sabiá, 1971, p. 135-139
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