sábado, 29 de novembro de 2014

Na escola


"...a escola era solitária. Os alunos de dezoito e dezenove anos não socializavam com os mais novos e, embora houvesse muitos da minha idade e mais novos ainda (inclusive um de doze anos esguio cujos boatos diziam ter um QI de duzentos e sessenta), suas vidas eram tão enclausuradas e suas preocupações tão tolas e com cara de estrangeiras, que era como se falassem alguma língua perdida de ensino fundamental que eu tinha esquecido. Moravam em casa com os pais; preocupavam-se com coisas do tipo curvas de desempenho, italiano no exterior e estágios de verão na ONU; surtavam se você acendia um cigarro na frente deles; eram sérios, bem-intencionados, perfeitos, sem noção da vida. Considerando o que eu tinha em comum com qualquer um deles, dava na mesma sair com crianças de oito anos."
Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 382

Cadáveres

"...só o que eu via era morte: calçadas repletas de mortos, cadáveres saindo em massa de ônibus e correndo pra casa do trabalho, nada restando de qualquer um deles dali a cem anos além de obturações, marca-passos e talvez alguns fragmentos de pano e osso."

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 418

depressão não era a palavra certa


"...depressão não era a palavra certa. Aquilo era um mergulho que encerrava tristeza e repulsa muito além do pessoal: uma náusea doentia e encharcada contra toda a humanidade e todo o esforço humano desde o princípio dos tempos. A repugnância sofredora da ordem biológica. Velhice, doença, morte. Ninguém escapava. Até os belos eram como frutas macias prestes a estragar. E mesmo assim de alguma forma as pessoas ainda continuavam fodendo e se reproduzindo e atirando nova forragem no túmulo, produzindo mais e mais novos seres para sofrer desse jeito como se fosse algo redentor, ou bom, ou até moralmente admirável: arrastando mais criaturas inocentes para o jogo em que se perde de um jeito ou de outro. Bebês se contorcendo e mamães complacentes e drogadas arrastando os pés. 'Ah, ele não é uma gracinha? Ohhh'. Crianças gritando e escorregando no parquinho sem a menor ideia de que infernos futuros as esperam: empregos maçantes, hipotecas desastrosas, casamentos ruins, perda de cabelo, prótese de quadril, xícaras solitárias de café numa casa vazia e uma bolsa de colostomia no hospital. A maioria das pessoas parecia satisfeita com o fino esmalte decorativo e a ardilosa iluminação de palco que, às vezes, fazia a atrocidade intrínseca da desagradável situação humana parecer de certa forma mais misteriosa ou menos repugnante. As pessoas apostavam, jogavam golfe, plantavam jardins, negociavam ações, faziam sexo, compravam carros novos, praticavam ioga, trabalhavam, rezavam, redecoravam a casa, ficavam abaladas pelas notícias, preocupavam-se à toa com os filhos, fofocavam sobre os vizinhos, debruçavam-se sobre críticas de restaurantes, fundavam instituições de caridade, apoiavam candidatos, iam ao U.S. Open, jantavam, viajavam, distraíam-se com todo tipo de dispositivo, atolando-se incessantemente com informações, textos, mensagens, entretenimento vindo de todas as direções para tentar se forçar a esquecer: onde estamos, o que somos. Mas sob a luz forte não havia como disfarçar as coisas. Aquilo estava podre da cabeça aos pés. Dedicar seu tempo ao escritório; gerar aposentadoria; mastigar os lençóis e sufocar com pêssego em calda no asilo."

Donna Tartt (1963-).
O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 444-5

E todas aquelas mulheres grávidas?


"E todas aquelas mulheres grávidas? 'Ah, Theo! Ele não é adorável?' Kitsey me empurrando inesperadamente um recém-nascido de uma amiga – eu num horror todo sincero saltando pra trás como se fosse um fósforo aceso.

'Ah, às vezes leva um tempo pra nós, homens', disse complacente Race Goldfarb, observando meu desconforto, erguendo a voz acima dos bebês aos berros e tropeços numa área da sala supervisionada pela babá. 'Mas deixa eu te dizer, Theo, quando segurar o seu próprio toquinho nos braços pela primeira vez...' – acariciando a barriga da mulher grávida – 'seu coração simplesmente amolece. Porque na primeira vez em que vi o pequeno Blaine' – rosto pegajoso, cambaleando ao redor desajeitadamente – 'e olhei praqueles grandes olhos azuis, praqueles lindos olhinhos de bebê... eu fui transformado. Fiquei apaixonado. Foi, tipo, ei, amiguinho! Você está aqui para me ensinar tudo! E, estou te dizendo, diante daquele primeiro sorriso eu simplesmente me derreti todo, como acontece com todos nós, não é, Lauren?'.

'Certo', falei educado, indo até a cozinha e me servindo de uma grande dose de vodca. Meu pai também ficava absurdamente melindroso perto de mulheres grávidas (...) e, longe da sabedoria convencional de se 'derreter todo', nunca tinha conseguido suportar crianças ou bebês, muito menos toda a cena de pais corujas, mulheres sorrindo tolamente enquanto acariciavam a própria barriga e homens com crianças amarradas contra o peito. Ele simplesmente saía pra fumar ou então se esquivava sombrio pra um canto, parecendo um traficante aliciador de menores toda vez que era obrigado a participar de qualquer tipo de evento escolar ou festa infantil. Aparentemente eu tinha herdado isso dele e talvez de vovô Decker também, essa violenta aversão procriadora zunindo alto na minha corrente sanguínea; parecia algo congênito, de fábrica, genético."

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 490

domingo, 23 de novembro de 2014

O Pintassilgo


"Às vezes eu prestava atenção na corrente no tornozelo do pintassilgo, ou pensava em como aquela era uma vida cruel para uma criaturinha viva – esvoaçando brevemente, sempre forçado a pousar no mesmo lugar desesperador."

Donna Tartt (1963-). O Pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 283

Imagem: "O Pintassilgo" (1654), de Carel Fabritius (1622-1654)

Penetra


"Antes de mais nada, devo dizer que sou um penetra. Para mim é fácil entrar em festas sem convite. Sou elegante, uso roupas caras, meu relógio é um Patek Philippe (uma falsificação perfeita), sei conversar sobre qualquer assunto e, o principal, as mulheres me acham bonito. Quando uma mulher acha um homem bonito ela lhe atribui todas as boas qualidades que um homem perfeito deve ter, especialmente dinheiro. As mulheres não querem saber de homens pobres. Não pensem que esse é mais um raciocínio misógino, eu não desprezo nem sinto aversão pelas mulheres, mas tenho que ser realista e ver as coisas como elas são."

Rubem Fonseca (1925-). Amálgama [Prêmio Jabuti 2014 - Contos e Crônicas]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 87

Cretinos

"As pessoas andam pela cidade e nada veem. Veem os mendigos? Não. Veem os buracos nas calçadas? Não. As pessoas leem livros? Não, veem novelas de televisão. Resumindo: as pessoas são todas umas cretinas."

Rubem Fonseca (1925-). Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 79

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

vazios

"A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos."

Manoel de Barros (1916-2014)

Lendo Walden


"A outra turma de literatura inglesa avançada estava lendo 'Grandes esperanças'. A minha estava lendo 'Walden'; eu me escondi na frieza e no silêncio do livro, um refúgio do brilho de chapa metálica do deserto. Durante o intervalo da manhã (quando nos juntavam e nos faziam sair pra um pátio com cercas de arame, perto das máquinas de sanduíches), eu ficava no canto mais sombreado que podia encontrar com minha edição de bolso e, com um lápis vermelho, ia lendo e sublinhando várias frases particularmente encorajadoras: 'A massa dos homens leva uma vida de desespero mudo'. 'Um desespero estereotipado mas inconsciente se esconde mesmo sob os chamados jogos e divertimentos da humanidade'. O que Thoreau teria achado de Las Vegas: suas luzes e sua algazarra, seu lixo e seus delírios, suas projeções e fachadas ocas?"

Donna Tartt (1963-). O Pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 217

Andando de bicicleta


"Andando de bicicleta pela cidade a gente tem uma boa ideia do mundo. As pessoas são infelizes, as ruas são esburacadas e fedem, todo mundo anda apressado, os ônibus estão sempre cheios de gente feia e triste. Mas o pior não é isso. O pior são as pessoas más, aquelas que batem em crianças, que batem em mulheres, urinam nos cantos das ruas. Andando na minha bicicleta, vejo tudo isso e chego em casa preocupado, e minha mãe pergunta o que aconteceu, você está triste, e eu respondo não é nada, não é nada. Mas é tudo, é eu não poder ajudar ninguém, hoje mesmo vi uma velhinha ser assaltada por dois moleques e não fiz nada, fiquei olhando de longe, como se aquilo não fosse assunto meu. Será que eu vou ser igual ao meu pai, um covarde filho da puta que não teve coragem de enfrentar a trabalheira de criar uma família e fugiu? É isso? Vou ser um cagão igual a ele?"

Rubem Fonseca (1925-). Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 60

domingo, 16 de novembro de 2014

Um sonho americano


"Saí da biblioteca e me dirigi ao bar no aposento ao lado e, depois de encher um copo alto com muitos cubos de gelo e vários centímetros de gim, tomei um longo gole, o gim desceu como um fogo purificador. Havia algo errado, mas não sabia o que: sentia-me particularmente desarmado. Então lembrei-me. O guarda-chuva de Shago. Estava a um canto do primeiro armário que procurei, e o cabo encontrou minha mão: segurando-o senti-me mais forte, como um vagabundo que tem cigarros, uma bebida e uma faca."

Norman Mailer (1923-2007). Um sonho americano (1965). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 242

Natureza-morta


"'Quanto tempo ele levou pra pintar isso?'

Minha mãe, que até então estava um pouco perto demais da pintura, deu um passo para trás para avaliá-la (...).

'Bem, os holandeses inventaram o microscópio', disse ela. 'Eram joalheiros, fabricantes de lentes. Querem tudo o mais detalhado possível, porque até as coisas mais ínfimas significam algo. Toda vez que vir moscas ou insetos numa natureza-morta – uma pétala murcha, um ponto preto na maçã –, é uma mensagem secreta que o pintor
 está te passando. Ele está te dizendo que as coisas vivas não duram – tudo é temporário. A morte na vida. É por isso que se diz natureza-morta. Talvez você não perceba de cara, com toda a beleza e a exuberância, a manchinha de podridão. Mas se olhar melhor – ali está'."

Donna Tartt (1963-).
O Pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 27

sábado, 8 de novembro de 2014

Sozinho na varanda


"Fiquei então na varanda sozinho e contemplei a lua, que estava cheia e muito baixa no horizonte. Tive um momento então. Porque a lua me respondeu. Não quero dizer com isso que tenha ouvido vozes, ou que Luna e eu tenhamos nos permitido a fantasia de um diálogo, não, na verdade foi pior do que isso. Alguma coisa nas profundezas da lua cheia, uma radiação terna e não tão inocente viajou rápido como o pensamento de um raio pelo céu noturno, das profundezas dos mortos naquelas cavernas da lua, voou pelo espaço e entrou em mim. E de repente compreendi a lua. Acredite se quiser. A única viagem verdadeira é aquela das profundezas de um ser para o coração de outro, e eu não era nada exceto profundezas abertas em carne viva naquele instante sozinho na varanda, olhando para Sutton Place...".

Norman Mailer (1923-2007).
Um sonho americano (1965). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 21