sexta-feira, 29 de julho de 2011

The severed garden

Wow, I’m sick of doubt
Live in the light of certain
South
Cruel bindings.
The servants have the power
Dog-men and their mean women
Pulling poor blankets over
Our sailors

I’m sick of dour faces
Staring at me from the tv
Tower, I want roses in
My garden bower; dig?
Royal babies, rubies
Must now replace aborted
Strangers in the mud
These mutants, blood-meal
For the plant that’s plowed.

They are waiting to take us into
The severed garden
Do you know how pale and wanton thrillful
Comes death on a strange hour
Unannounced, unplanned for
Like a scaring over-friendly guest you’ve
Brought to bed
Death makes angels of us all
And gives us wings
Where we had shoulders
Smooth as raven’s
Claws

No more money, no more fancy dress
This other kingdom seems by far the best
Until it’s other jaw reveals incest
And loose obedience to a vegetable law.

I will not go
Prefer a feast of friends
To the giant family.

Jim Morrison (1943-1971)

Se te queres matar

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

Fernando Pessoa [Álvaro de Campos] (1926)

terça-feira, 26 de julho de 2011

Uma Aprendizagem

Lóri, pela primeira vez na sua vida, sentiu uma força que mais parecia uma ameaça contra o que ela fora até então. Ela então falou sua alma para Ulisses:

- Um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus minha extrema individualidade de pessoa mas seremos um só.

Olhou para Ulisses com a humildade que de repente sentia e viu com surpresa a surpresa dele. Só então ela se surpreendeu consigo própria. Os dois se olharam em silêncio. Ela parecia pedir socorro contra o que de algum modo involuntariamente dissera. E ele com os olhos miúdos quis que ela não fugisse e falou:

- Repita o que você disse, Lóri.

- Não sei mais.

- Mas eu sei, eu vou saber sempre. Você literalmente disse: um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha extrema individualidade de pessoa mas seremos um só.

- Sim.

Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me trascende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo.

Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres (1969). 18ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 84-86.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A paixão segundo G.H. (II)

Mas sei que ao mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É como na agonia da morte: alguma coisa na morte quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está havendo em mim uma alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar.

Escuta sem susto e sem sofrimento: o neutro do Deus é tão grande e vital que eu, não aguentando a célula do Deus, eu a tinha humanizado. Sei que é horrivelmente perigoso descobrir agora que o Deus tem a força do impessoal - porque sei, oh eu sei! que é como se isso significasse a destruição do pedido!

E é como se o futuro parasse de vir a existir. E nós não podemos, nós somos carentes.

Mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade permanente. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje. Porque Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca para de ser. Somos nós que não aguentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.

Sei que o que estou sentindo é grave e pode me destruir. Porque - porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é.

E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só aguento a sua promessa! A notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida. E este é o maior susto que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou.

E seu reino, meu amor, também é deste mundo. Eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa, e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é adulto e continua a se prometer a maturidade.

E eis que eu estava sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se cumpriu. Anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante. Eu preferia continuar pedindo, sem ter a coragem de já ter.

(...)

Não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele, extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível - minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.)

Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos.

Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. (1964). Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 147-150.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A paixão segundo G.H.

E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia - é que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo de delírio e erro. Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo. Se a "verdade" fosse aquilo que posso entender - terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho.

A verdade tem que estar exatamente no que não poderei jamais compreender. E, mais tarde, seria capaz de posteriormente me entender? Não sei. O homem do futuro nos entenderá como somos hoje? Ele distraidamente, com alguma ternura distraída, afagará nossa cabeça como nós fazemos com o cão que se aproxima de nós e nos olha de dentro de sua escuridão, com olhos mudos e aflitos. Ele, o homem futuro, nos afagaria, remotamente nos compreendendo, como eu remotamente ia depois me entender, sob a memória da memória da memória já perdida de um tempo de dor, mas sabendo que nosso tempo de dor ia passar assim como a criança não é uma criança estática, é um ser crescente. (...)

Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. (1964). Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 110.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O Morto Prazenteiro

Onde haja caracóis, n'um fecundo torrão,
Uma grandiosa cova eu mesmo quero abrir,
Onde repouse em paz, onde possa dormir,
Como dorme no oceano o livre tubarão.

Detesto os mausoléus, odeio os monumentos,
E, a ter de suplicar as lágrimas do mundo,
Prefiro oferecer o meu carcaz imundo,
Qual precioso manjar, aos corvos agoirentos.

Verme, larva brutal, tenebroso mineiro,
Vai entregar-se a vós um morto prazenteiro,
Que livremente busca a treva, a podridão!

Sem piedade, minai a minha carne impura,
E dizei-me depois se existe uma tortura
Que não tenha sofrido este meu coração!

Charles Baudelaire (1821-1867). In: "As Flores do Mal"

Spleen

Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nós, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;

Quando se muda a terra em húmida enxovia
D'onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no tecto apodrecido;

Quando a chuva, caindo a cântaros, parece
D'uma prisão enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em frebre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,

- Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espíritos errantes
Que a chorrar e a carpir se arrastam pelo mundo;

Soturnos funerais deslizam tristemente
Em minh'alma sombria. A sucumbida Esp'rança,
Lamenta-se, chorando; e a Angústia, cruelmente,
Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança!

Charles Baudelaire (1821-1867). In: "As Flores do Mal"

Sepultura d'un poeta maudito

Se, em noite horrorosa, escura,
Um cristão, por piedade,
te conceder sepultura
Nas ruínas d'alguma herdade,

As aranhas hão-de armar
No teu coval suas teias,
E nele irão procriar
Víboras e centopeias.

E sobre a tua cabeça,
A impedi-la que adormeça.
- Em constantes comoções,

Hás-de ouvir lobos uivar,
Das bruxas o praguejar,
E os conluios dos ladrões.

Charles Baudelaire (1821-1867). In: "As Flores do Mal"

Baudelaire

Sua admiração por Baudelaire não conhecia limites. A seu ver, em literatura, os escritores tinham se limitado até então a explorar as superfícies da alma ou a penetrar-lhe os subterrâneos acessíveis e iluminados, assinalando, aqui e ali, as jazidas dos pecados capitais, estudando os seus filões, estudando o seu crescimento, anotando, como o fizera Balzac por exemplo, as estratificações da alma possuída da monomania de uma paixão, da ambição, da avareza, da estupidez paterna, do amor senil.

Tratava-se, de resto, da excelente saúde das virtudes e dos vícios, da tranquila atuação de cérebros de conformação vulgar, da realidade prática das ideias correntes, sem ideal de depravação malsã, sem nenhum além; em suma, as descobertas dos analistas se detinham nas especulações más ou boas, classificadas pela Igreja; era a investigação simples, a vigilância rotineira de um botânico que acompanha de perto o desenvolvimento previsto das florações normais plantadas em terra natural.

Baudelaire havia ido mais longe; descera até as profundezas da mina inesgotável, enfiara-se por galerias abandonadas ou desconhecidas, alcançara aqueles distritos da alma onde se ramificam as vegetações monstruosas do pensamento.

Lá, perto desses confins onde habitam as aberrações e as doenças, os tétanos místicos, a ardente febre da luxúria, os tifos e os vômitos do crime, descobrira ele, incubando sob a morna redoma do tédio, o pavoroso retorno da idade dos sentimentos e das ideias.

Havia ele revelado a psicologia mórbida do espírito que atingiu o outubro das suas sensações; narrado os sintomas das almas solicitadas pela dor, privilegiadas pelo spleen; mostrado a cárie crescente das impressões, quando os entusiasmos, as crenças da juventude já se calaram, quando não resta mais que a árida recordação das misérias suportadas, das intolerâncias sofridas, das contusões padecidas por inteligências a quem oprime um destino absurdo.

Acompanhara ele todas as fases desse lamentável outono, observando a criatura humana dócil em irritar-se, hábil em defraudar-se, obrigando seus pensamentos a trapacear entre si, para melhor sofrer, estragando de antemão, graças à análise e à observação, toda a alegria possível. (...).

Em páginas magníficas, ele tinha exposto os amores híbridos, exasperados pela impotência em que estão de satisfazer-se, as perigosas mentiras dos estupefacientes e dos tóxicos cujo auxílio é requerido para entorpecer a dor e enganar o tédio. Numa época em que a literatura atribuía quase exclusivamente a dor de viver à má sorte de um amor desprezado ou aos ciúmes do adultério, havia ele negligenciado tais moléstias infantis e sondado as chagas mais incuráveis, mais duradouras, mais profundas que são cavadas pela saciedade, pela desilusão, pelo desprezo, nas almas em ruínas a quem o presente tortura, o passado repugna, e o porvir atemoriza e desespera.

E quanto mais Des Esseintes relia Baudelaire, mais reconhecia um indizível encanto nesse escritor que, num tempo em que o verso servia apenas para pintar o aspecto exterior dos seres e das coisas, alcançara exprimir o inexprimível, graças a uma linguagem musculosa e carnuda que, mais do que qualquer outra, possuía o maravilhoso poder de fixar, com uma estranha saúde de expressão, os estados mórbidos mais fugazes, mais tremidos, dos espíritos esgotados e das almas tristes.

Depois de Baudelaire, era assaz restrito o número de livros franceses alinhados nas suas estantes. Des Esseintes mostrava-se seguramente insensível às obras ante as quais é de bom gosto a pessoa pasmar-se.

Joris-Karl Huysmans, Às avessas (1884). São Paulo: Penguin, 2011, pp. 208-210.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

I hold no grudge

I hold no grudge
There's no resentment und'neath
I'll extend the laurel wreath and we'll be friends
But right there is where it ends

I hold no grudge
And I'll forgive you your mistake
But forgive me if I take it all to heart
And make sure that it doesn't start again

Yes I'm the kind of people
You can step on for a little while
But when I call it quits
Baby that's it
I'm the kind of people
You can hurt once in a while
But crawling just ain't my style

I hold no grudge
Deep inside me there's no regrets
But a gal who's been forgotten may forgive
But never once forget

Ouça aqui essa bela canção de Angelo Badalamenti e John Clifford na inesquecível voz de Nina Simone (1933-2003)

O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturas.

Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral. “As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos”.

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa…

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana, que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade…

Só há que caminhar perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial faz a vida valer a pena.

E para mim, basta o essencial!

Mário Coelho Pinto de Andrade (1928/1990), poeta, ensaísta e escritor angolano

Fonte: paraensedeminas (Blog do Luiz David)

terça-feira, 12 de julho de 2011

Francisco de Goya

Para distrair-se e matar as horas intérminas, recorreu às pastas de estampas e arrumou os seus Goyas; os primeiros estados de certas pranchas dos Caprichos, provas reconhecíveis pelo seu tom avermelhado, outrora adquiridas a peso de ouro, alegraram-no e ele se abismou nelas, acompanhando as fantasias do pintor, enamorado de suas cenas vertiginosas, de suas feiticeiras cavalgando gatos, de suas mulheres forcejando por arrancar os dentes de um enforcado, de seus bandidos, de seus súcubos, de seus demônios e anões.

Depois, percorreu-lhe todas as outras séries de águas-fortes e aquatintas, os Provérbios de um horror tão macabro, os temas de guerra de uma ira tão feroz, a prancha do Garrote finalmente, de que acarinhava uma maravilhosa prova de ensaio, impressa em papel espesso, sem cola, com linhas claras visíveis atravessando a pasta.

A selvagem inspiração, o talento áspero, desvairado de Goya, o prendiam; todavia, a universal admiração conquistada por suas obras afastavam-no um tanto delas, e ele havia renunciado, fazia anos, a enquadrá-las, receoso de, pondo-as em evidência, o primeiro imbecil que o viesse visitar se julgasse obrigado a proferir asnices e a extasiar-se, por cortesia, diante delas.

Joris-Karl Huysmans, Às avessas (1884), São Paulo: Penguin, 2011, p. 166.

Imagem: Caprichos (70), de Francisco de Goya (1746-1828)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Pedro, meu filho

Acordei pela manhã com uma estranha sensação de leveza, como se em poucas horas eu tivesse emagrecido vários quilos. Lembrava-me de ter ido para a cama por volta de onze da noite, entorpecido pelo vinho e sentindo a refeição pesar no estômago, enquanto o coração bombeava com dificuldade o sangue necessário para uma digestão que, ao que tudo indicava, transformaria meu sono em uma travessia angustiosa pelas longas horas da madrugada.

Minha mulher roncava quando eu coloquei a cabeça no travesseiro, tateando o lençol à procura do controle remoto da televisão e pensando, com tristeza, em como seria minha noite depois de tanta comida e bebida.

No entanto, dormi maravilhosamente bem.

Mas não acordei apenas com uma sensação de leveza no corpo, como se em cinco ou seis horas eu tivesse passado por uma dieta de desintoxicação e emagrecimento que normalmente só traria resultados depois de cinco ou seis meses de sacrifícios terríveis. Não. Acordei também com o espírito mais leve, como se o peso de sentimentos negativos, que até à minha entrada pacífica no misterioso território do sono eu carregava dentro de mim, tivesse desaparecido junto com o peso corporal.

Levantei-me da cama e me dirigi à sacada do quarto, cuja porta de vidro se abria para uma bela vista do bairro, sem sentir o inchaço e as dores nas juntas que me atacavam todas as manhãs; com o corpo leve, a respiração fácil, o coração sereno e calmo, e, ao mesmo tempo, sem as preocupações e angústias que, de costume, não me davam trégua desde as primeiras luzes do dia até altas horas da noite: sobretudo aquela vontade de poder, que vinha sempre acompanhada de um desejo incontrolável de acumular riquezas e me apresentar ao mundo com todos os artificialismos que exigiam minhas ambições e sonhos de grandeza.

Acordei sentindo-me livre dessas vontades – ou pelo menos não as senti consumindo minha alma com suas línguas de fogo, obrigando meu corpo a reagir contra tudo que se colocasse como obstáculo às estratégias e planos por mim traçados para alcançar o que, na minha visão, era o sucesso. Aquele dia não foi assim; embora eu sentisse os demônios do poder e da ambição me espreitando pelos cantos do quarto, dispostos a reconquistar o meu ser, ainda não completamente livre das forças sombrias que cercam muitas de nossas vontades mundanas.

Porém, naquela manhã, nenhum peso me pareceu tão ausente de mim quanto a culpa que eu carregava há vários anos por ter sido o responsável pela desgraça que se abateu sobre o meu filho.

Sempre fui muito exigente com ele. Na escola, tirar o segundo lugar, para mim, era inaceitável. Ele tinha que ser sempre o primeiro, o melhor, o mais inteligente, o mais perspicaz, o mais invejado pelos colegas. Sempre cultivei nele o que eu acreditava ser a fórmula perfeita para o sucesso: ambição, orgulho, coragem, determinação e força, atributos que, com a dose certa de inteligência, sagacidade, dissimulação e estratégia, poderiam levá-lo aos cumes mais altos do sucesso profissional, da glória, da riqueza e do poder. E, para ajudá-lo nessa empreitada em direção aos picos do insuperável, haveria sempre o enorme patrimônio da família, acrescido cada vez mais com novas fazendas, casas, apartamentos e aluguéis.

Diante disso, certamente não deverá surpreender ao leitor a minha decepção amarga quando percebi que meu filho gostava mais de poesia e filosofia do que de matemática, química e biologia. Eu queria que ele fosse médico, um renomado cirurgião, respeitado no país inteiro e até mesmo no exterior, mas o que ele demonstrava aos quinze anos, contrariando todas as minhas expectativas, era uma paixão avassaladora pelo teatro, que ele praticava às escondidas depois das aulas, interpretando figuras grotescas, cantando e dançando como uma mocinha. E, como eu soube depois, ele gostava também de escrever poemas, que lia em recitais aos sábados, nos quais muitas vezes vestia-se de mulher, usando quase sempre uma peruca escura e uma enorme bata branca cheia de detalhes dourados.

Aquilo dilacerava minha alma, mas consegui conter minha indignação nos limites de um aconselhamento pacífico e de poucas palavras, até o dia em que, aos dezessete anos, ele entrou em meu escritório para me dizer que havia decidido prestar vestibular para Filosofia. Tentei fazê-lo mudar de idéia, dizendo que tal decisão era um completo desatino. “Você vai viver de quê, meu filho? O que faz um filósofo? Ele trabalha com o quê? Quanto ganha alguém para filosofar?”. Não adiantou. Ele me olhou nos olhos e disse que sua decisão estava tomada, e que se eu quisesse aproveitar aquela chance para agir como um pai de verdade (pelo menos uma vez na vida), que eu o apoiasse.

Eu não o apoiei. Eu o ameacei de todas as maneiras que pude: corte de mesada, expulsão de casa e outras bobagens do gênero, entremeadas com frases não menos estúpidas como: “O que os outros vão pensar?”. Ao que ele me respondeu, perguntando: “Por que você se preocupa tanto com os outros? Quem são esses outros? Por que eles precisam achar que nós somos felizes, que você se casou com a minha mãe por amor, que eu sou o melhor aluno da escola, que o meu futuro está garantido graças ao meu talento e ao patrimônio de merda que você herdou, construiu e fez crescer com a cobiça e a ambição que traz dentro de sua alma desde a infância?”.

Aquelas perguntas foram lançadas com uma fúria que eu jamais tinha visto naquele garoto meigo, que raramente se dirigia a mim, e que, quando o fazia, era só para trocar uma e outra palavra sobre uma bobagem qualquer, com o único propósito de quebrar, por um momento, o gelo glacial que cercava a nossa relação.

Imediatamente fui tomado por um ódio terrível e avancei em sua direção disposto a matá-lo se fosse preciso. Ele tentou correr, mas puxei-o pelos cabelos e joguei-o com toda a força contra a parede. Peguei-o pelo braço e levei-o até o banheiro do corredor, onde enfiei sua cabeça no vaso umas dez vezes, enquanto gritava: “É na merda que você quer viver, sua bicha? Então experimenta esta merda aqui e veja se você gosta”. E ele se debatia, tentava chamar a mãe – que já devia estar dormindo, dopada com seus remédios para depressão –, e lutava para respirar, com o rosto todo molhado com a urina que eu tinha despejado ali alguns minutos antes. Quando ele conseguiu escapar de minhas mãos, pegou a chave do carro e saiu em disparada pela avenida.

Mas, como eu dizia, ao acordar naquela manhã, não senti mais a culpa me corroendo o espírito; somente uma lembrança distante a me apertar de leve o peito e a maravilhosa sensação de que o futuro se encontrava aberto para o perdão e a consolação sem dor, sem medo e angústia.

Olhando o céu que brilhava com as primeiras luzes da manhã, senti a presença do meu filho ao meu lado na sacada, e o vi, com seu olhar perdido no horizonte, vestindo a mesma roupa que ele usava quando saiu de carro naquela fatídica noite.

“Pedro, meu filho...”, eu disse, sorrindo, e estendi a mão para tocá-lo. Em seu rosto jovial e alegre percebi, aliviado, que ele tinha me perdoado, e uma felicidade muito maior que a soma de todas as alegrias que eu tinha vivido em toda a minha vida me invadiu naquele exato momento, tornando meu corpo e meu espírito ainda mais leves, como se eu fosse capaz de saltar e alcançar, sem o menor esforço, a plenitude dos céus.

“Pedro, meu filho... Como é possível... você... aqui?”, perguntei, com lágrimas nos olhos, mas ele não respondeu.

O acidente. Aquele terrível acidente do qual, sem dúvida, eu tinha sido o único culpado... Cheguei no local às duas da madrugada. O carro estava completamente destruído, abraçado a um poste na avenida deserta. Preso às ferragens, sem vida, estava o corpo do meu filho. Tentei abrir com as mãos a carcaça confusa de ferros retorcidos, dizendo para ele, desesperado: “Vou tirar você daí, meu filho. Não se preocupe. Vou tirar você daí e vamos começar uma vida nova. Você vai fazer o que gosta e eu vou te apoiar, não se preocupe...”. Mas já não havia mais o que fazer.

“Pedro, meu filho... Como é possível?”, perguntei de novo, enquanto a manhã ganhava vida sobre os telhados marrons das casas do bairro. Ele se virou novamente para mim e apontou para a minha cama, dizendo: “Veja”. Ao me virar, levei um susto. Ao lado de minha esposa adormecida estava o que parecia ser eu, deitado de barriga pra cima, com o rosto contorcido e as mãos crispadas: um corpo pálido e sem vida. Pedro respondeu ao meu espanto com um novo sorriso e disse: “Aquilo ali nada mais é do que o envoltório carnal que você abandonou durante a noite. Chegou o momento, para você, de se dirigir a outros planos de aperfeiçoamento espiritual e, talvez, conforme os desígnios de Deus, um dia voltar à crosta terrestre para uma nova etapa de vida junto aos homens. Recebi autorização de meus guias espirituais para vir buscá-lo e auxiliá-lo na sua nova jornada de aperfeiçoamento. Informo-lhe, ademais, que a sensação de leveza que você sente agora se intensificará ainda mais, na medida em que for deixando para trás aquilo que lhe servira de motor no plano físico e que, para nós, no plano espiritual, são pesos inúteis: o orgulho, a ambição, o egoísmo, o desejo de poder e riqueza, a prepotência, a dissimulação, a cupidez, a mentira, o ódio, a vingança...”.

Eu não conseguia dizer nada. Só o olhava, assustado, sem entender aquilo tudo, sem acreditar.

“Venha comigo, meu pai...”, disse ele, e me estendeu a mão. Agarrei-a com força, puxei meu filho para junto de mim e abracei-o, chorando e repetindo, com lágrimas nos olhos: “Pedro... meu filho... Pedro... meu filho...”.

Flávio Marcus da Silva

domingo, 10 de julho de 2011

Misericórdia

Saio do café; e descubro logo como é fácil apiedar-se dos outros. A gente chega, dá corda aos bons sentimentos, e depois vai-se embora. É assim que se visitam os doentes. Cumpre-se o dever, tem-se pena, e vai-se embora. O doente fica. O doente vê o mundo numa perspectiva diferente do visitante. Ele vê um mundo que chega, que se debruça com fácil misericórdia de dez minutos, e que depois se despede. O doente fica. É, por definição, alguém que fica. Da cama ele vê o visitante voltar-se ainda uma vez, na porta, com votos de melhora; depois vê o visitante de costas, lampeiro, ágil; ouve seus passos na escada, alguma frase de último conforto jovial para a pessoa da família, que agradece; por fim, range o portão, bate a porta do automóvel, arranca o motor... e foi-se embora a misericórdia!

Gustavo Corção, Lições de abismo (1950), 15ª edição, Rio de janeiro: Agir, 2004, p. 143-4.