domingo, 10 de julho de 2011

Misericórdia

Saio do café; e descubro logo como é fácil apiedar-se dos outros. A gente chega, dá corda aos bons sentimentos, e depois vai-se embora. É assim que se visitam os doentes. Cumpre-se o dever, tem-se pena, e vai-se embora. O doente fica. O doente vê o mundo numa perspectiva diferente do visitante. Ele vê um mundo que chega, que se debruça com fácil misericórdia de dez minutos, e que depois se despede. O doente fica. É, por definição, alguém que fica. Da cama ele vê o visitante voltar-se ainda uma vez, na porta, com votos de melhora; depois vê o visitante de costas, lampeiro, ágil; ouve seus passos na escada, alguma frase de último conforto jovial para a pessoa da família, que agradece; por fim, range o portão, bate a porta do automóvel, arranca o motor... e foi-se embora a misericórdia!

Gustavo Corção, Lições de abismo (1950), 15ª edição, Rio de janeiro: Agir, 2004, p. 143-4.

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