Sua admiração por Baudelaire não conhecia limites. A seu ver, em literatura, os escritores tinham se limitado até então a explorar as superfícies da alma ou a penetrar-lhe os subterrâneos acessíveis e iluminados, assinalando, aqui e ali, as jazidas dos pecados capitais, estudando os seus filões, estudando o seu crescimento, anotando, como o fizera Balzac por exemplo, as estratificações da alma possuída da monomania de uma paixão, da ambição, da avareza, da estupidez paterna, do amor senil.
Tratava-se, de resto, da excelente saúde das virtudes e dos vícios, da tranquila atuação de cérebros de conformação vulgar, da realidade prática das ideias correntes, sem ideal de depravação malsã, sem nenhum além; em suma, as descobertas dos analistas se detinham nas especulações más ou boas, classificadas pela Igreja; era a investigação simples, a vigilância rotineira de um botânico que acompanha de perto o desenvolvimento previsto das florações normais plantadas em terra natural.
Baudelaire havia ido mais longe; descera até as profundezas da mina inesgotável, enfiara-se por galerias abandonadas ou desconhecidas, alcançara aqueles distritos da alma onde se ramificam as vegetações monstruosas do pensamento.
Lá, perto desses confins onde habitam as aberrações e as doenças, os tétanos místicos, a ardente febre da luxúria, os tifos e os vômitos do crime, descobrira ele, incubando sob a morna redoma do tédio, o pavoroso retorno da idade dos sentimentos e das ideias.
Havia ele revelado a psicologia mórbida do espírito que atingiu o outubro das suas sensações; narrado os sintomas das almas solicitadas pela dor, privilegiadas pelo spleen; mostrado a cárie crescente das impressões, quando os entusiasmos, as crenças da juventude já se calaram, quando não resta mais que a árida recordação das misérias suportadas, das intolerâncias sofridas, das contusões padecidas por inteligências a quem oprime um destino absurdo.
Acompanhara ele todas as fases desse lamentável outono, observando a criatura humana dócil em irritar-se, hábil em defraudar-se, obrigando seus pensamentos a trapacear entre si, para melhor sofrer, estragando de antemão, graças à análise e à observação, toda a alegria possível. (...).
Em páginas magníficas, ele tinha exposto os amores híbridos, exasperados pela impotência em que estão de satisfazer-se, as perigosas mentiras dos estupefacientes e dos tóxicos cujo auxílio é requerido para entorpecer a dor e enganar o tédio. Numa época em que a literatura atribuía quase exclusivamente a dor de viver à má sorte de um amor desprezado ou aos ciúmes do adultério, havia ele negligenciado tais moléstias infantis e sondado as chagas mais incuráveis, mais duradouras, mais profundas que são cavadas pela saciedade, pela desilusão, pelo desprezo, nas almas em ruínas a quem o presente tortura, o passado repugna, e o porvir atemoriza e desespera.
E quanto mais Des Esseintes relia Baudelaire, mais reconhecia um indizível encanto nesse escritor que, num tempo em que o verso servia apenas para pintar o aspecto exterior dos seres e das coisas, alcançara exprimir o inexprimível, graças a uma linguagem musculosa e carnuda que, mais do que qualquer outra, possuía o maravilhoso poder de fixar, com uma estranha saúde de expressão, os estados mórbidos mais fugazes, mais tremidos, dos espíritos esgotados e das almas tristes.
Depois de Baudelaire, era assaz restrito o número de livros franceses alinhados nas suas estantes. Des Esseintes mostrava-se seguramente insensível às obras ante as quais é de bom gosto a pessoa pasmar-se.
Joris-Karl Huysmans, Às avessas (1884). São Paulo: Penguin, 2011, pp. 208-210.
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