Acordei pela manhã com uma estranha sensação de leveza, como se em poucas horas eu tivesse emagrecido vários quilos. Lembrava-me de ter ido para a cama por volta de onze da noite, entorpecido pelo vinho e sentindo a refeição pesar no estômago, enquanto o coração bombeava com dificuldade o sangue necessário para uma digestão que, ao que tudo indicava, transformaria meu sono em uma travessia angustiosa pelas longas horas da madrugada.
Minha mulher roncava quando eu coloquei a cabeça no travesseiro, tateando o lençol à procura do controle remoto da televisão e pensando, com tristeza, em como seria minha noite depois de tanta comida e bebida.
No entanto, dormi maravilhosamente bem.
Mas não acordei apenas com uma sensação de leveza no corpo, como se em cinco ou seis horas eu tivesse passado por uma dieta de desintoxicação e emagrecimento que normalmente só traria resultados depois de cinco ou seis meses de sacrifícios terríveis. Não. Acordei também com o espírito mais leve, como se o peso de sentimentos negativos, que até à minha entrada pacífica no misterioso território do sono eu carregava dentro de mim, tivesse desaparecido junto com o peso corporal.
Levantei-me da cama e me dirigi à sacada do quarto, cuja porta de vidro se abria para uma bela vista do bairro, sem sentir o inchaço e as dores nas juntas que me atacavam todas as manhãs; com o corpo leve, a respiração fácil, o coração sereno e calmo, e, ao mesmo tempo, sem as preocupações e angústias que, de costume, não me davam trégua desde as primeiras luzes do dia até altas horas da noite: sobretudo aquela vontade de poder, que vinha sempre acompanhada de um desejo incontrolável de acumular riquezas e me apresentar ao mundo com todos os artificialismos que exigiam minhas ambições e sonhos de grandeza.
Acordei sentindo-me livre dessas vontades – ou pelo menos não as senti consumindo minha alma com suas línguas de fogo, obrigando meu corpo a reagir contra tudo que se colocasse como obstáculo às estratégias e planos por mim traçados para alcançar o que, na minha visão, era o sucesso. Aquele dia não foi assim; embora eu sentisse os demônios do poder e da ambição me espreitando pelos cantos do quarto, dispostos a reconquistar o meu ser, ainda não completamente livre das forças sombrias que cercam muitas de nossas vontades mundanas.
Porém, naquela manhã, nenhum peso me pareceu tão ausente de mim quanto a culpa que eu carregava há vários anos por ter sido o responsável pela desgraça que se abateu sobre o meu filho.
Sempre fui muito exigente com ele. Na escola, tirar o segundo lugar, para mim, era inaceitável. Ele tinha que ser sempre o primeiro, o melhor, o mais inteligente, o mais perspicaz, o mais invejado pelos colegas. Sempre cultivei nele o que eu acreditava ser a fórmula perfeita para o sucesso: ambição, orgulho, coragem, determinação e força, atributos que, com a dose certa de inteligência, sagacidade, dissimulação e estratégia, poderiam levá-lo aos cumes mais altos do sucesso profissional, da glória, da riqueza e do poder. E, para ajudá-lo nessa empreitada em direção aos picos do insuperável, haveria sempre o enorme patrimônio da família, acrescido cada vez mais com novas fazendas, casas, apartamentos e aluguéis.
Diante disso, certamente não deverá surpreender ao leitor a minha decepção amarga quando percebi que meu filho gostava mais de poesia e filosofia do que de matemática, química e biologia. Eu queria que ele fosse médico, um renomado cirurgião, respeitado no país inteiro e até mesmo no exterior, mas o que ele demonstrava aos quinze anos, contrariando todas as minhas expectativas, era uma paixão avassaladora pelo teatro, que ele praticava às escondidas depois das aulas, interpretando figuras grotescas, cantando e dançando como uma mocinha. E, como eu soube depois, ele gostava também de escrever poemas, que lia em recitais aos sábados, nos quais muitas vezes vestia-se de mulher, usando quase sempre uma peruca escura e uma enorme bata branca cheia de detalhes dourados.
Aquilo dilacerava minha alma, mas consegui conter minha indignação nos limites de um aconselhamento pacífico e de poucas palavras, até o dia em que, aos dezessete anos, ele entrou em meu escritório para me dizer que havia decidido prestar vestibular para Filosofia. Tentei fazê-lo mudar de idéia, dizendo que tal decisão era um completo desatino. “Você vai viver de quê, meu filho? O que faz um filósofo? Ele trabalha com o quê? Quanto ganha alguém para filosofar?”. Não adiantou. Ele me olhou nos olhos e disse que sua decisão estava tomada, e que se eu quisesse aproveitar aquela chance para agir como um pai de verdade (pelo menos uma vez na vida), que eu o apoiasse.
Eu não o apoiei. Eu o ameacei de todas as maneiras que pude: corte de mesada, expulsão de casa e outras bobagens do gênero, entremeadas com frases não menos estúpidas como: “O que os outros vão pensar?”. Ao que ele me respondeu, perguntando: “Por que você se preocupa tanto com os outros? Quem são esses outros? Por que eles precisam achar que nós somos felizes, que você se casou com a minha mãe por amor, que eu sou o melhor aluno da escola, que o meu futuro está garantido graças ao meu talento e ao patrimônio de merda que você herdou, construiu e fez crescer com a cobiça e a ambição que traz dentro de sua alma desde a infância?”.
Aquelas perguntas foram lançadas com uma fúria que eu jamais tinha visto naquele garoto meigo, que raramente se dirigia a mim, e que, quando o fazia, era só para trocar uma e outra palavra sobre uma bobagem qualquer, com o único propósito de quebrar, por um momento, o gelo glacial que cercava a nossa relação.
Imediatamente fui tomado por um ódio terrível e avancei em sua direção disposto a matá-lo se fosse preciso. Ele tentou correr, mas puxei-o pelos cabelos e joguei-o com toda a força contra a parede. Peguei-o pelo braço e levei-o até o banheiro do corredor, onde enfiei sua cabeça no vaso umas dez vezes, enquanto gritava: “É na merda que você quer viver, sua bicha? Então experimenta esta merda aqui e veja se você gosta”. E ele se debatia, tentava chamar a mãe – que já devia estar dormindo, dopada com seus remédios para depressão –, e lutava para respirar, com o rosto todo molhado com a urina que eu tinha despejado ali alguns minutos antes. Quando ele conseguiu escapar de minhas mãos, pegou a chave do carro e saiu em disparada pela avenida.
Mas, como eu dizia, ao acordar naquela manhã, não senti mais a culpa me corroendo o espírito; somente uma lembrança distante a me apertar de leve o peito e a maravilhosa sensação de que o futuro se encontrava aberto para o perdão e a consolação sem dor, sem medo e angústia.
Olhando o céu que brilhava com as primeiras luzes da manhã, senti a presença do meu filho ao meu lado na sacada, e o vi, com seu olhar perdido no horizonte, vestindo a mesma roupa que ele usava quando saiu de carro naquela fatídica noite.
“Pedro, meu filho...”, eu disse, sorrindo, e estendi a mão para tocá-lo. Em seu rosto jovial e alegre percebi, aliviado, que ele tinha me perdoado, e uma felicidade muito maior que a soma de todas as alegrias que eu tinha vivido em toda a minha vida me invadiu naquele exato momento, tornando meu corpo e meu espírito ainda mais leves, como se eu fosse capaz de saltar e alcançar, sem o menor esforço, a plenitude dos céus.
“Pedro, meu filho... Como é possível... você... aqui?”, perguntei, com lágrimas nos olhos, mas ele não respondeu.
O acidente. Aquele terrível acidente do qual, sem dúvida, eu tinha sido o único culpado... Cheguei no local às duas da madrugada. O carro estava completamente destruído, abraçado a um poste na avenida deserta. Preso às ferragens, sem vida, estava o corpo do meu filho. Tentei abrir com as mãos a carcaça confusa de ferros retorcidos, dizendo para ele, desesperado: “Vou tirar você daí, meu filho. Não se preocupe. Vou tirar você daí e vamos começar uma vida nova. Você vai fazer o que gosta e eu vou te apoiar, não se preocupe...”. Mas já não havia mais o que fazer.
“Pedro, meu filho... Como é possível?”, perguntei de novo, enquanto a manhã ganhava vida sobre os telhados marrons das casas do bairro. Ele se virou novamente para mim e apontou para a minha cama, dizendo: “Veja”. Ao me virar, levei um susto. Ao lado de minha esposa adormecida estava o que parecia ser eu, deitado de barriga pra cima, com o rosto contorcido e as mãos crispadas: um corpo pálido e sem vida. Pedro respondeu ao meu espanto com um novo sorriso e disse: “Aquilo ali nada mais é do que o envoltório carnal que você abandonou durante a noite. Chegou o momento, para você, de se dirigir a outros planos de aperfeiçoamento espiritual e, talvez, conforme os desígnios de Deus, um dia voltar à crosta terrestre para uma nova etapa de vida junto aos homens. Recebi autorização de meus guias espirituais para vir buscá-lo e auxiliá-lo na sua nova jornada de aperfeiçoamento. Informo-lhe, ademais, que a sensação de leveza que você sente agora se intensificará ainda mais, na medida em que for deixando para trás aquilo que lhe servira de motor no plano físico e que, para nós, no plano espiritual, são pesos inúteis: o orgulho, a ambição, o egoísmo, o desejo de poder e riqueza, a prepotência, a dissimulação, a cupidez, a mentira, o ódio, a vingança...”.
Eu não conseguia dizer nada. Só o olhava, assustado, sem entender aquilo tudo, sem acreditar.
“Venha comigo, meu pai...”, disse ele, e me estendeu a mão. Agarrei-a com força, puxei meu filho para junto de mim e abracei-o, chorando e repetindo, com lágrimas nos olhos: “Pedro... meu filho... Pedro... meu filho...”.
Flávio Marcus da Silva
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