domingo, 31 de janeiro de 2010

O que eu queria era uma caverna...

Os três ou quatro primeiros dias na Mears-Starbuck transcorreram de maneira idêntica. De fato, rotina era uma coisa da qual dependia todo o funcionamento da loja. O sistema de castas era universalmente aceito. Não havia um vendedor sequer que falasse com um funcionário do estoque mais do que uma ou duas palavras superficiais. E isso me afetava. Pensava nisso enquanto empurrava meu carrinho. Era possível que os vendedores fossem mais inteligentes que o pessoal do estoque? Eles certamente se vestiam melhor. Incomodava-me o fato de que considerassem que suas posições valessem tanto assim. Talvez, se eu fosse um vendedor, me sentisse da mesma maneira. Eu não dava muita bola para os funcionários do estoque. Nem para os vendedores.

Agora, pensei, empurrando meu carrinho, tenho esse emprego. É assim que as coisas devem ser? Não é de espantar que homens assaltem bancos. Há muitos trabalhos por demais aviltantes. Por que, diabos, eu não era um juiz de uma corte superior ou um pianista de concerto? Porque isso exigia treinamento e treinamento custava dinheiro. Mas, de qualquer forma, eu não queria ser nada na vida. E nisso, certamente, eu estava sendo bem sucedido.

Empurrei meu carrinho até o elevador e apertei o botão.

As mulheres queriam homens que ganhassem dinheiro, as mulheres queriam homens de estirpe. Quantas mulheres de classe viviam com vagabundos de cortiço? Bem, eu não queria uma mulher mesmo. Não para viver junto comigo. Como os homens podiam viver com mulheres? O que isso significava? O que eu queria era uma caverna no Colorado com um estoque de comida e bebida para três anos. Limparia minha bunda com areia. Qualquer coisa, qualquer coisa que me salvasse do afogamento desta existência trivial, covarde e estúpida (p. 231-32).

Trecho extraído do livro Misto-quente, de Charles Bukowski (Porto Alegre: L&PM, 2009)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Misto-quente

Podia ver a estrada à minha frente. Eu era pobre e ficaria pobre. Mas eu não queria particularmente dinheiro. Eu sequer sabia o que desejava. Sim, eu sabia. Queria algum lugar para me esconder, um lugar em que ninguém tivesse que fazer nada. O pensamento de ser alguém na vida não apenas me apavorava mas também me deixava enojado. Pensar em ser um advogado ou um professor ou um engenheiro, qualquer coisa desse tipo, parecia-me impossível. Casar, ter filhos, ficar preso a uma estrutura familiar. Ir e retornar de um local de trabalho todos os dias. Era impossível. Fazer coisas, coisas simples, participar de piqueniques em família, festas de Natal, 4 de julho, Dia do Trabalho, Dia das Mães...afinal, é para isso que nasce um homem, para enfrentar essas coisas até o dia de sua morte? Preferia ser um lavador de pratos, retornar para a solidão de um cubículo e beber até dormir. (p. 212)


Durante o jantar naquela noite, minha mãe disse:
- Henry, estou tão orgulhosa por você ter conseguido um emprego!
Não respondi.
Meu pai disse:
- Bem, você não está feliz de ter conseguido um emprego?
- É.
- É? É isso que tem a dizer? Você tem noção de quantos homens estão desempregados no país neste momento?
- Um monte, eu acho.
- Então você deveria estar agradecido.
- Escute, será que não podíamos apenas comer em paz?
- Você deveria ser grato por esta comida também. Tem idéia de quanto custa esta refeição?
Afastei meu prato.
- Merda! Não consigo comer esta coisa!
Levantei-me e fui para o meu quarto.
- Estou pensando em aparecer lá depois para lhe dar uma lição!
Parei.
- Estarei esperando, velho.
Então me afastei. Entrei no quarto e esperei. Mas sabia que ele não ia vir. Ajustei o despertador para chegar à Mears-Starbuck na hora certa. Ainda eram sete e meia, mas tirei a roupa e fui para a cama. Apaguei a luz e fiquei no escuro. Não havia nada mais a ser feito, nenhum lugar para ir. Meus pais logo estariam na cama, as luzes apagadas.
Meu pai gostava do ditado: "Dormir cedo e levantar cedo faz um homem ter saúde, dinheiro e bom senso".
Este hábito, contudo, não lhe havia trazido nenhum desses benefícios. Decidi que eu deveria tentar reverter o processo.
Não conseguia dormir.
Talvez se me masturbasse pensando na srta. Meadows?
Vulgar demais.
Fiquei ali, chafurdando na escuridão, esperando que algo acontecesse. (p. 230-31)


Reunidos ao meu redor estavam os fracos em vez dos fortes, os feios em vez dos belos, os perdedores em vez dos vencedores. Era como se meu destino fosse cruzar a vida em companhia deles. Isto não me incomodava tanto quanto o fato de que para esses cretinos, para esses companheiros idiotas, eu era um cara irresistível. Eu era como um monte de bosta que atraía moscas em vez de ser uma flor desejada por borboletas e abelhas. Eu queria viver sozinho, me sentia melhor assim, mais limpo; no entanto, eu não era esperto o suficiente para me livrar deles. Talvez eles fossem meus mestres: pais de outra maneira. De qualquer forma, era duro agüentá-los ao meu redor enquanto comia meus sanduíches à bolonhesa. (p. 169)

Trechos extraídos do livro Misto-quente, de Charles Bukowski. Porto Alegre: L&PM, 2009.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A magia das palavras

Eu lia um livro por dia. Li todo o D. H. Lawrence disponível na biblioteca (...) E então veio Hemingway. Que emoção! Ele sabia como escrever uma frase. Era um prazer. As palavras não eram tolas, as palavras eram coisas que podiam fazer sua mente zunir. Se você as lesse e deixasse que sua mágica operasse, era possível viver sem dor, sem esperança, independente do que pudesse lhe acontecer.

Charles Bukowski, Misto-quente (1982). Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 166.
Na foto acima, o escritor americano Ernst Hemingway (1899-1961)

Confissão

esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama

sinto muita pena de
minha mulher

ela vai ver este
corpo
rijo e
branco

vai sacudi-lo e
talvez
sacudi-lo de novo:

“Henry!”

e Henry não vai
responder.

não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.

no entanto,
eu quero que ela
saiba
que dormir
todas as noites
a seu lado

e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas

e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora
ser ditas:

eu
te amo.

Charles Bukowski (1920-1994)

Deixem que eu trace o meu próprio caminho

Deixem que eu trace o meu próprio caminho:
que outros promulguem leis,
das leis não tomarei conhecimento;
que outros exaltem homens eminentes
e promovam a paz,
eu promovo conflito e agitação;
eu não exalto nenhum homem eminente,
e ainda reprovo bem na cara dele
o que foi dado por mais valioso.

Walt Whitman (1819-1892)

sábado, 23 de janeiro de 2010

Ô nostalgie des lieux...

Ô nostalgie des lieux qui n'étaient point
assez aimés à l'heure passagère,
que je voudrais leur rendre de loin
le geste oublié, l'action supplémentaire!

Revenir sur mes pas, refaire doucement
- et cette fois, seul - tel voyage,
rester à la fontaine davantage,
toucher cet arbre, caresser ce banc...

Monter à la chapelle solitaire
que tout le monde dit sans intérêt;
pousser la grille de ce cimetière,
se taire avec lui qui tant se tait.

Car n'est-ce pas le temps où il importe
de prendre un contact subtil et pieux?
Tel était fort, c'est que la terre est forte;
et tel se plaint: c'est qu'on la connaît peu.

Rainer Maria Rilke (1875-1926)

Imagem: Igrejinha de Santa Quitéria, em Catas Altas - MG (foto de Ricardo Avelar Andrade - BH-MG)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Democracia e Educação no Brasil

Li recentemente, numa sequência, três livros que me ajudaram a entender melhor a noção limitada que grande parte dos brasileiros tem hoje sobre a democracia. De certa forma, os três autores confirmam a célebre afirmação de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936): "A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido" (p. 160).

Os livros Brasil: de Getúlio a Castelo, de Thomas Skidmore (1967), Os Senhores das Gerais: os 'Novos Inconfidentes' e o Golpe de 1964, de Heloísa Maria Murgel Starling (1986), e Partido e Sociedade: a Trajetória do MDB, de Rodrigo Patto Sá Motta (1993), mostram como predominou no Brasil, desde a década de 1940, uma noção de democracia focada quase exclusivamente no direito ao voto, muitas vezes manipulado pelos meios de comunicação, pelo clientelismo (explícito ou disfarçado) e pelos famosos conchavos políticos de bastidores.

Nos anos 60, 70 e 80, muitos cidadãos brasileiros se levantaram a favor de uma democracia autêntica, baseada numa participação efetiva da sociedade no espaço público, e até hoje, sobretudo nos grandes centros, suas vozes ecoam contra uma cultura política tradicionalista, que impede a formação e a entrada na arena política de uma sociedade organizada, bem informada e crítica.

Por que a Educação no Brasil é tão elitizada? Por que o ensino básico público no Brasil é, na maioria das vezes, de má qualidade? Onde estudam, na sua cidade, os filhos da elite?

O fato é que a crise da Educação no Brasil tem atingido também as escolas particulares, sobretudo no interior, pois encontrar bons professores, com boa formação, que saibam se expressar bem e se posicionar de forma crítica e reflexiva diante dos problemas enfrentados pela sociedade - criando assim um diferencial no ensino privado -, é mais difícil do que achar uma agulha no palheiro. Nas capitais, essa diferenciação injusta e vergonhosa entre um ensino básico público ruim e um ensino básico privado de qualidade permite que a maioria das vagas nas universidades federais - ainda consideradas centros de excelência em educação superior -, sobretudo naqueles cursos que oferecem maiores oportunidades de ascensão social, quais sejam Direito, Medicina, Odontologia etc, sejam preenchidas, em sua maior parte, por alunos que frequentaram escolas particulares.

Assim fica fácil manter a maioria da população desorganizada politicamente, pouco consciente de seus direitos e deveres de cidadão, incapaz de perceber a diferença entre o clientelismo personalista, baseado numa política de favores, e a democracia autêntica, baseada na participação efetiva de uma sociedade organizada, crítica e consciente da importância do seu papel na defesa da coisa pública.

Flávio Marcus da Silva

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Passeio em Belo Horizonte

Ontem cheguei em BH por volta de nove da manhã. Ônibus lotado. Rodoviária lotada. Calor insuportável. Na mochila eu levava uma camisa branca de algodão, uma garrafinha de água mineral e trezentos reais para gastar em livros, café, comida japonesa e chocolate amargo. Tinha o dia todo para caminhar, observar, pensar, recordar, ler, beber e comer.

Lá pelo meu terceiro café expresso, caminhando pela Savassi, entre a Ouvidor e a Travessa, eu me recordei do tempo em que ali mesmo, naquele miolo, eu me sentava à mesa com meus colegas historiadores, e a gente se lançava a acalorados debates sobre a Escola dos Annales, o Marxismo, a Nova História Cultural etc. Tomávamos café, capuccino ou vinho tinto [daqueles mais em conta] e comíamos queijo e amendoim. Eram discussões apaixonadas que não levavam a absolutamente nada. Mas e daí?

Dos livros que eu trouxe, não vejo a hora de ler o novo do Rubem Fonseca, O Seminarista, e o clássico de Charles Bukowski, Misto-quente.

Na foto, o Kahlua Café, na Rua Guajajaras

Sobre mandar e obedecer

Os homens dividem-se, na vida prática, em três categorias - os que nasceram para mandar, os que nasceram para obedecer, e os que não nasceram nem para uma coisa nem para outra. Estes últimos julgam sempre que nasceram para mandar; julgam-no mesmo mais frequentemente que os que efectivamente nasceram para o mando (...)

O homem que nasceu para mandar é o homem que impõe deveres a si mesmo. O homem que nasceu para obedecer é incapaz de se impor deveres, mas é capaz de executar os deveres que lhe são impostos (seja por superiores, seja por fórmulas sociais), e de transmitir aos outros a sua obediência; manda, não porque mande, mas porque é um transmissor de obediência. O homem que não nasceu nem para mandar nem para obedecer sabe só mandar, mas como nem manda por índole nem por transmissão de obediência, só é obedecido por qualquer circunstância externa - o cargo que exerce, a posição social que ocupa, a fortuna que tem (...)

Fernando Pessoa, in Teoria e Prática do Comércio

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Carta ao Zézim

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida (...).

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano (...).

Extraído do livro Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu (Rio de Janeiro: Agir, 2005, p. 152).

Imagem: Sunrise by the Ocean, de Vladimir Kush

sábado, 9 de janeiro de 2010

People without ambition

"It was true that I didn’t have much ambition, but there ought to be a place for people without ambition, I mean a better place than the one usually reserved. How in the hell could a man enjoy being awakened at 6:30 a.m. by an alarm clock, leap out of bed, dress, force-feed, shit, piss, brush teeth and hair, and fight traffic to get to a place where essentially you made lots of money for somebody else and were asked to be grateful for the opportunity to do so?"

Charles Bukowski, Factotum

Hot Water Music

"Balls," he said, "I'm tired of painting. Let's go out. I'm tired of the stink of oils, I'm tired of being great. I'm tired of waiting to die. Let's go out."

"Go out where?" she asked.

"Anywhere. Eat, drink, see."

"Jorg," she said, "what will I do when you die?"

"You will eat, sleep, fuck, piss, shit, clothe yourself, walk around and bitch."

"I need security."

"We all do."

"I mean, we're not married. I won't even be able to collect your insurance."

"That's all right, don't worry about it. Besides, you don't believe in marriage, Arlene."

Arlene was sitting in the pink chair reading the afternoon newspaper. "You say five thousand women want to sleep with you. Where does that leave me?"

"Five thousand and one."

"You think I can't get another man?"

"No, there's no problem for you. You can get another man in three minutes."

"You think I need a great painter?"

"No, you don't. A good plumber would do."

"Yes, as long as he loved me."

Charles Bukowski, Hot Water Music (Livro de contos traduzido no Brasil com o título Numa Fria)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Escravo de si mesmo

"A suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é um elemento indispensável da dignidade humana. (...) Só os vulgares consentirão em atribuir a sua dignidade ao que fizeram; em virtude dessa condescendência serão «escravos e prisioneiros» das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem".

Hannah Arendt (1906-1975)

Títulos

Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efêmeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vênias e dos protocolos.
Vinha a morte e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.

José Jorge Letria (1951-)

domingo, 3 de janeiro de 2010

Poem for my 43rd Birthday

To end up alone
in a tomb of a room
without cigarettes
or wine--
just a lightbulb
and a potbelly,
grayhaired,
and glad to have
the room.
...in the morning
they're out there
making money:
judges, carpenters,
plumbers, doctors,
newsboys, policemen,
barbers, carwashers,
dentists, florists,
waitresses, cooks,
cabdrivers...
and you turn over
to your left side
to get the sun
on your back
and out
of your eyes.

Charles Bukowski (1920-1994)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Os Convencidos da Vida

Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. [...] Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.

Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.

Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se? [...].

No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.

Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajetória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro. Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.

Alexandre O'Neill (1924-1986)

Opinião e Interesse

"A maior parte das coisas pode ser considerada sob pontos de vista muito diferentes: interesse geral ou interesse particular, principalmente. A nossa atenção, naturalmente concentrada sob o aspecto que nos é proveitoso, impede que vejamos os outros. O interesse possui, como a paixão, o poder de transformar em verdade aquilo em que lhe é útil acreditar. Ele é, pois, freqüentemente, mais útil do que a razão, mesmo em questões em que esta deveria ser, aparentemente, o guia único. Em economia política, por exemplo, as convicções são de tal modo inspiradas pelo interesse pessoal que se pode, em geral, saber previamente, conforme a profissão de um indivíduo, se ele é partidário ou não do livre câmbio [...]. O interesse, sob todas as suas formas, não é somente gerador de opiniões. Aguçado por necessidades muito intensas, ele enfraquece logo a moralidade. O magistrado ávido de promoção, o cirurgião em presença de uma operação inútil porém frutuosa, o advogado que enriquecerá com complicações de processo que ele poderia evitar, terão rapidamente a moral muito abalada se imperiosas necessidades de luxo lhes estimularem o interesse. Essas necessidades podem constituir, nas naturezas superiores, um elemento de atividade e de progresso, mas nas naturezas medíocres determinam, pelo contrário, uma acentuada degenerescência moral".

Gustave Le Bon (1841-1931)

O penoso trabalho de Verificar

"Todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o fato mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou, apenas nos basta folhear aqui e ali uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—«Este é uma besta! Aquele é um maroto!». Para proclamar—«É um génio!» ou «É um santo!» oferecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda. E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquele pequenino lado do fato, do homem, da obra, que perpassou num relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um caráter: por um caráter avaliamos um povo".

Eça de Queiroz (1845-1900)

As qualidades dos outros

"Devido ao homem ter tendência para ser parcial para com aqueles a quem ama, injusto para com aqueles a quem odeia, servil para com os seus superiores, arrogante para com os seus inferiores, cruel ou indulgente para com os que estão na miséria ou na desgraça, é que se torna tão difícil encontrar alguém capaz de exercer um julgamento perfeito sobre as qualidades dos outros".

Confúcio (551 a. C. - 479 a. C.)

A Bondade em Hannah Arendt

Quando a bondade se mostra abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser útil como caridade organizada ou como ato de solidariedade. Daí: «Não dês as tuas esmolas diante dos homens, para seres visto por eles». A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade ou zeloso membro de uma igreja. Daí: «Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita.»

Hannah Arendt (1906-1975)