sexta-feira, 30 de maio de 2014

Solidez



"Solidez é uma coisa que sempre lhe fez falta. Solidez é seu calcanhar de aquiles. Inteligência tem o bastante (embora não tanto quanto sua mãe acha e ele próprio um dia achou); sólido, nunca foi. Rothamsted lhe daria se não solidez, imediatamente, pelo menos um título, um trabalho, uma concha. Técnico Experimental Júnior, depois, um dia, Técnico Experimental, Técnico Experimental Sênior: sem dúvida, por trás de um escudo tão eminentemente respeitável, em particular, em segredo, poderia continuar com o trabalho de transmutar experiência em arte, o trabalho para o qual foi trazido ao mundo."

J. M. Coetzee (1940-). Juventude (2002). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 46-7

Está na Inglaterra



"Está na Inglaterra, em Londres; tem um emprego, um emprego de verdade, melhor que meramente lecionar, pelo qual recebe um salário. Conseguiu escapar da África do Sul. Está tudo bem, atingiu seu primeiro objetivo, devia estar contente. Na verdade, com o passar das semanas, vai se sentindo mais e mais abatido. Tem ataques de pânico, que combate com dificuldade. No escritório, não há nada em que pousar os olhos além de superfícies metálicas planas. Debaixo do brilho sem sombras da luz de neon, sente que sua alma está sob ataque. O prédio, um bloco de concreto e vidro sem particularidades, parece emanar um gás, sem cheiro, sem cor, que consegue penetrar seu sangue e o amortece. A IBM, é capaz de jurar, o está matando, transformando-o num zumbi."

J. M. Coetzee (1940-). Juventude (2002). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 49-50

Depressão



"Houve um tempo, quando ainda era uma criança inocente, em que acreditou que a inteligência era a única coisa que importava, que, se fosse bastante inteligente, obteria tudo o que desejasse. Ir para a universidade o pôs em seu lugar. A universidade demonstrou que não era o mais inteligente, nem de longe. E agora se vê diante da vida real, onde não pode contar nem com os exames. Na vida real tudo o que sabe fazer bem, ao que parece, é ficar deprimido. Na depressão ele ainda é o melhor da classe. Parece não haver limite para a depressão que consegue atrair para si e suportar. Nem quando se arrasta pelas ruas frias dessa cidade estranha, indo para parte nenhuma, andando apenas para se cansar, para, ao voltar a seu quarto, poder ao menos dormir, não sente dentro de si a menor disposição de se deixar esmagar pelo peso da depressão. A depressão é o seu elemento. Na depressão sente-se em casa, como um peixe dentro da água. Se a depressão for abolida, não saberá o que fazer consigo."

J. M. Coetzee (1940-). Juventude (2002). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 66

No grande mundo



"Ele se inquieta por ver que ainda está escrevendo sobre a África do Sul. Preferiria deixar para trás seu eu sul-africano, como deixou para trás a própria África do Sul. A África do Sul foi um mau começo, uma desvantagem. Uma família rural sem distinção, má formação escolar, a língua africâner: desses componentes de sua desvantagem, conseguiu, mais ou menos, escapar. Está no grande mundo, ganhando a própria vida, e não está se dando tão mal, ou pelo menos não está fracassando, não obviamente. Não precisa relembrar a África do Sul. Se um vagalhão viesse do Atlântico amanhã e varresse da existência o extremo sul do continente africano, não derramaria uma única lágrima. Estaria entre os que se salvaram."

J. M. Coetzee (1940-). Juventude (2002). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 63-4

domingo, 25 de maio de 2014

Essência do sentir



"Cada um de nós tem, a sós consigo no seu silêncio de ser um ser, uma personalidade inexprimível, que nenhuma palavra pode dar, nenhum gesto interpreta, que o mais expressivo dos olhares não interpreta (...). Por essa personalidade extra-social, extra-humana mesmo, cada qual é um eterno isolado, crucificado eternamente no seu próprio não-ser-os-outros. A própria essência íntima do sentir é não poder exprimir, salvo em si e só por si, adentro do indivíduo para si mesmo."

Fernando Pessoa (1888-1935). Teoria do Paganismo (1915)

Senso comum



"(...) outras pessoas podem estar erradas, mesmo quando ocupam posições importantes, mesmo quando estão advogando crenças adquiridas durante séculos por uma vasta maioria. (...) Aquilo que é rotulado de óbvio ou 'natural' raramente o é. O reconhecimento desse fato deveria nos ensinar a achar que o mundo é mais flexível do que parece, pois as opiniões consagradas frequentemente não surgem de um processo de raciocínio irrepreensível e sim de séculos de desordem intelectual. Talvez não existam bons motivos para que as coisas permaneçam como estão."

Alain de Botton (1969-). As consolações da filosofia. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 28-30

Piratas



"Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!

Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!"

Fernando Pessoa (1888-1930).Ode Marítima (Álvaro de Campos). Poemas escolhidos. São Paulo: Klick editora, p. 101

domingo, 18 de maio de 2014

Um sorriso para lembrar



"Minha mãe, pobre peixinha,
querendo ser feliz, apanhando duas ou três vezes
por semana, me dizendo para ser feliz:
'Henry, sorria! Por que você nunca sorri?'
E então ela sorria, para me mostrar como se fazia, e era o
sorriso mais triste que eu jamais vira."

Charles Bukowski (1920-1994). Um sorriso para lembrar

Leviathan



"Beyond reading the papers and watching the television news, he did almost nothing. He slept. He stared out the window. He thought about the immensity of fear."

Paul Auster (1947-). Leviathan. London: Faber and Faber, 1992, p.168

Josefine, a cantora



"(...) Josefine, livre da faina terrena, a seu ver pronta para juntar-se aos escolhidos, perder-se-á com alegria entre as multidões incontáveis de heróis do nosso povo, e logo, uma vez que não cultivamos a história, será esquecida em uma redenção altiva como todos os seus irmãos."

Franz Kafka (1883-1924). Um artista da fome e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 76

Uma pequena mulher



"Essa pequena mulher está muito insatisfeita comigo, tem sempre algo a criticar em mim, sempre uma injustiça a me imputar, irrito-a por tudo e por nada; se alguém pudesse separar a vida em suas menores partes e analisar cada uma das partezinhas isoladas, sem dúvida cada partezinha da minha vida seria motivo de irritação para ela. Muitas vezes perguntei-me por que a irrito tanto; pode ser que tudo em mim contrarie seu senso estético, seu sentimento de justiça, seus hábitos, suas tradições, suas esperanças, existem naturezas assim, contrárias, mas por que ela sofre tanto com isso? Não existe relação nenhuma entre nós que pudesse levá-la a sofrer por minha causa. Bastaria ela decidir me encarar como um estranho total, o que afinal sou, e eu sequer me oporia a essa decisão, pelo contrário, recebê-la-ia de braços abertos, bastaria ela decidir esquecer a minha existência, que eu jamais impus nem seria capaz de impor a ela – e todo o sofrimento desapareceria."

Franz Kafka (1883-1924). Um artista da fome e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 17-18

sexta-feira, 9 de maio de 2014

O Cínico (III)


"O cínico diz o que pensa a todos, e até mesmo do modo mais cáustico, sem nenhuma discriminação, quer se trate de um simples homem comum, de um famoso filósofo, de um rei poderoso (...)". 

Giovanni Reale. História da Filosofia. Vol. III. São Paulo: Loyola, 1994. p. 27

Foto: cena da peça "O Cínico", de Rony Morais. Texto: Flávio Marcus da Silva

O Cínico (II)



"(...) procuro o homem que viva segundo a sua mais autêntica essência, procuro o homem que, além de toda exterioridade, de todas as convenções ou de todas as regras impostas pela sociedade, e além do capricho do destino e da fortuna, reencontre a sua natureza genuína, viva em conformidade com ela e assim seja feliz (...)". 

Giovanni Reale. Diógenes e a radicalização do cinismo. In: História da Filosofia. Vol. III. São Paulo: Loyola, 1994. p. 24

Foto: cena da peça "O Cínico", de Rony Morais. Texto: Flávio Marcus da Silva

O Cínico (I)



"(...) certa vez, quando Diógenes tomava sol, aproximou-se o grande Alexandre, o homem mais poderoso da terra, que lhe disse: 'Pede-me o que quiseres'; ao que Diógenes respondeu: 'Afasta-te do meu sol'. Diógenes não sabia o que fazer com o enorme poder de Alexandre; bastava-lhe, para estar contente, o sol, que é a coisa mais natural, à disposição de todos, ou melhor, bastava-lhe a profunda convicção da inutilidade de tal poder, já que a felicidade vem de dentro e não de fora do homem." 

Giovanni Reale/Dario Antiseri. O florescimento do cinismo. In: História da Filosofia. Volume I. 11ª ed. São Paulo: Paulus, 2012. p. 233

Foto: cena da peça "O Cínico", de Rony Morais. Texto: Flávio Marcus da Silva

Leviathan



"Accidents happen, after all. Every hour of every day, people are dying when they least expect it. They burn up in fires, they drown in lakes, they drive their cars into other cars, they fall out of windows. You read about it in the paper every morning, and you'd have to be a fool not to know that your life could end just as abruptly and pointlessly as any one of those poor bastards".

Paul Auster (1947-). Leviathan. London: Faber and Faber, 1992, p. 120

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Antes de nascer o mundo




"Obtivera emprego demitindo-se de si mesma. No fundo, dentro dela se havia formado uma decisão. Ela se separaria em duas como um fruto que se esgarça: o seu corpo era a polpa; o caroço era a alma. Entregaria a polpa aos apetites deste e de outros patrões. A sua própria semente, porém, seria preservada. De noite, depois de ter sido comido, lambuzado e cuspido, o corpo retornaria ao caroço e ela dormiria, enfim, inteira como um fruto. Mas esse sono reparador tardava a ponto de ela desesperar."

Mia Couto. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 169

Deserto



"Pela primeira vez confessei o que havia muito me apertava no peito: eu herdara a loucura de meu pai. Por longos períodos era atacado de uma cegueira seletiva. O deserto se transferia para dentro de mim, convertendo a vizinhança num povoado de ausências."

Mia Couto. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 275