sábado, 19 de abril de 2014

O lugar da necrópole



"Há quem tendo cantado e batido os dentes no copo
já morreu.
Há quem tendo falado suas dores secretas
está hoje selado sob lápides,
excrescendo sobre mim o seu fantasma
de pessoa verdadeira, rebelada,
de pessoa poética.
Na juventude me comprazia o fúnebre,
as faces lívidas dos poetas doentes.
Hoje, só preciso da vida pra morrer.
Nas metrópoles,
o campo-santo acaba confundido,
rodeado de bares.
E por causa disso iludem-se as pessoas
de ter nas mãos a indomesticável.
O cemitério quer ladeira e montes
para os quais se olha ao entardecer:
um dia estarei lá,
lá longe,
no incontestável lugar."

Adélia Prado (1936-). O lugar da necrópole. In: Terra de Santa Cruz (1981). Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. p. 269

tudo é pó


"No dia do meu casamento eu fiquei muito aflita.
Tomamos cerveja quente com empadas de capa grossa.
Tive filhos com dores.
Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite,
eu tirava da bolsa um quilo de feijão.
Não luto mais daquele modo histérico,
entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre
e a seu modo pacifica.
...
Que importam as cinzas,
se há convertidos em sua matéria ingrata,
até olhos que sobre mim estremeceram de amor?
Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei.
Hoje parece maio, um dia esplêndido,
os que vamos morrer iremos aos mercados."
...

Adélia Prado (1936-). Cinzas. In: O coração disparado (1978). Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. p. 195

domingo, 13 de abril de 2014

Um abraço para Manoel



Poema que o escritor moçambicano Mia Couto escreveu para o nosso grande poeta Manoel de Barros: 

Um abraço para Manoel 

Dizem que entre nós
há oceanos e terras com peso de distância.
Talvez. Quem sabe de certezas não é o poeta.
O mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.

Contra essa distância
tu me deste uma sabedora desgeografia
e engravidando palavra africana
tornei-me tão vizinho
que ganhei intimidades
com a barriga do teu chão brasileiro.

E é sempre o mesmo chão,
a mesma poeira nos versos,
a mesma peneira separando os grãos,
a mesma infância nos devolvendo a palavra
a mesma palavra devolvendo a infância.

E assim,
sem lonjura,
na mesma água
riscaremos a palavra
que incendeia a nuvem.

Mia Couto, 19/12/2013

Silêncio


"Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.

Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo o silêncio."

Hilda Hilst (1930-2004). Poesia: 1959-1979. São Paulo: Quíron, 1980.

Tenacidade



"– Sabe que ainda não desci das árvores desde aquele dia?

As tarefas que se baseiam numa tenacidade interior devem permanecer mudas e obscuras; por pouco que alguém as anuncie ou delas se vanglorie, tudo parece supérfluo, sem sentido ou até mesquinho. Assim, tão logo meu irmão pronunciou aquelas palavras, arrependeu-se de tê-las dito, e não lhe importava mais nada, e teve até vontade de descer e acabar com aquilo. Ainda mais quando Viola afastou lentamente o chicote da boca e disse, em tom gentil:

– É mesmo?... Que tonto!"

Italo Calvino (1923-1985). O barão nas árvores (1957). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 48

sentir-se cansada



"Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto. Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e esse refinamento de vida."

Clarice Lispector (1920-1977). Laços de família (1960). 25ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 51

Festa de aniversário



"A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeites de paetês e um drapejado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata."

Clarice Lispector (1920-1977). Laços de família (1960). 25ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 71

Foto: Clarice Lispector conversando com os atores da peça "Perto do coração selvagem", uma adaptação de sua obra para o teatro, encenada entre 1965 e 1966. Entre eles, o ator José Wilker, falecido recentemente.

Enforcamento no carvalho



"...chegou o dia da execução. Na carroça, acompanhado por um frade, João do Mato fez sua última viagem como ser vivo. Os enforcamentos em Penúmbria eram feitos num alto carvalho no meio da praça. Ao redor, o povo fazia um círculo.

Já com a corda no pescoço, João do Mato ouviu um assovio entre os galhos. Ergueu o rosto. Descobriu Cosme com o livro fechado. 

– Conta como termina – pediu o condenado.

– Lamento dizer, João – respondeu Cosme –, Jonas acaba pendurado pela garganta.

– Obrigado. O mesmo aconteça comigo! Adeus! – E ele mesmo deu um pontapé na escada, enforcando-se.

Quando o corpo parou de se debater, a multidão foi embora. Cosme permaneceu até a noite, apoiado no ramo do qual pendia o enforcado. Todas as vezes que um corvo se aproximava para bicar os olhos ou o nariz do cadáver, Cosme o expulsava agitando o gorro."

Italo Calvino (1923-1985). O barão nas árvores (1957). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 107-8

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Corra atrás de seus sonhos


"Desde que nascemos, fomos condicionados a acreditar que devemos seguir um certo padrão para que possamos ser aceitos na sociedade. Tudo o que é diferente pode causar constrangimento, então toda a nossa realidade foi criada de modo que não nos diferenciássemos do que é considerado normal pelos padrões sociais. O conceito de normalidade atual envolve se formar na escola, escolher um curso e ingressar na faculdade, fazer estágio, subir de cargo de tempos em tempos, arrumar um par, se casar, ter filhos, comprar uma casa, mobiliá-la e provavelmente passar bons anos pagando por tudo isso. Esse é um estilo de vida que pode ser interessante para muita gente, mas por outro lado, também existe muita gente que não se encaixa nessa sequência de expectativas e que acha um desperdício ter que viver conforme os padrões alheios. 


Por causa dessa educação e da influência cultural que tivemos, somos tomados por um grande medo do fracasso, que nos impede de ir em uma nova direção – mesmo tendo certeza que essa nova direção poderia nos trazer muito mais satisfação e felicidade. O fantasma do 'e se' nos assombra: 'E se tudo der errado?', 'E se meus pais ficarem decepcionados?', 'E se eu não conseguir manter o meu padrão de vida?', 'E se a educação dos meus filhos for prejudicada?'. Como encontrar respostas para tantos 'e se' é algo difícil, geralmente empacamos nessa fase e deixamos nossos sonhos serem somente sonhos."

Fonte: site nômades digitais

Inspiração



"Quando a natureza é tão bela como nestes dias, sinto às vezes uma lucidez terrível, então não me reconheço mais, e o quadro me vem como num sonho."

Vincent Van Gogh (1853-1890). In: David Haziot. Van Gogh. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 213

Imagem: "Noite estrelada sobre o Ródano" (1889), de Vincent Van Gogh

Autorretrato com a orelha cortada



"O Vincent que vimos, tão confiante na sua arte, com uma euforia interior indispensável para realizar uma obra em que a cor atingia tal intensidade, estava morto. O homem que o zuavo Milliet descrevia como o inocente que compunha telas de cores alucinantes não existia mais. Daqui por diante, é quase uma sombra que seguiremos até o fim, ou um morto em liberdade condicional que não cessa de automutilar-se, para denegrir sua obra ou atentar contra sua vida, até o momento de realizar a mutilação suprema que é o suicídio."

David Haziot. Van Gogh. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 254

Imagem: "Autorretrato com a orelha cortada" (1889), de Vincent Van Gogh (1853-1890)

Campo de trigo com corvos



"'Mas o que você quer?', ele escreve. Esse 'o que você quer?', marca de impotência, que surge aqui, o acompanhará até o fim e será a última frase que Théo lerá do irmão. 'Infelizmente é muito complicado de várias formas, meus quadros não têm valor, custam-me, é verdade, despesas extraordinárias, às vezes mesmo em sangue e cérebro. Não vou insistir, e o que quer que eu diga?'."

David Haziot. Van Gogh. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 260

Imagem: "Campo de trigo com corvos" (1890), de Vincent Van Gogh (1853-1890)

Obrigado, Théo



"Enviarei nos próximos dias duas caixas de quadros, alguns dos quais não tenha receio de destruir." / "Há um monte de lixo dentro, que deverá ser destruído, mas os enviei assim mesmo para que você possa conservar o que julgar passável."

Trechos de duas cartas de Vincent Van Gogh (1853-1890) ao seu irmão Théo, antes e depois de enviar a ele duas caixas contendo quadros seus. O biógrafo do pintor, David Haziot, comenta: 

"Lixo! O resto sendo apenas 'passável'! A história da arte deve muito a Théo por não ter levado em conta essas instruções".

David Haziot. Van Gogh. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 272

Perto do fim



"Quanto mais sua pintura encontra o amor e a admiração dos homens, mais ele busca se esconder, não aparecer, não ser o que foi – não existir, em suma. Tocamos aqui o núcleo do drama de Vincent, fracassar para dar razão ao pai.

Vincent tem uma crise, a que esperava e cujas emoções o exauriam. Mas ela surpreende pela brevidade: apenas uma semana.

Durante esses dias tentou novamente suicidar-se engolindo tintas. A ligação entre esses tubos de tinta e o remorso em relação ao pai parece evidente. Por enquanto, Vincent só tentou suicidar-se ingerindo material de pintura: essência de terebintina ou tintas. Ao mesmo tempo, porém, espera com ansiedade que Peyron o autorize de novo a pintar, pois só isso o equilibra. Está crucificado entre duas forças que não mais domina: o ato de pintar o salva ao mesmo tempo em que o condena. Peyron aceita devolver-lhe seu material. Théo insistiu junto ao doutor e também sugeriu a Vincent desenhar, por ora, para não ter os tubos ao alcance da mão."

David Haziot. Van Gogh. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 288