sábado, 31 de agosto de 2013

Opção pelo simples



Tem gente que sofre horrores para se enquadrar no modelo burguês de família perfeita: padrão de vida elevado, filhos com inteligência acima da média e sem nenhum desvio de comportamento, pais exemplares em todos os quesitos da perfeição: amorosos, bem sucedidos, respeitados, baluartes da moral e dos bons costumes, etc. Nesse modelo, as falhas, quando surgem, devem ser rapidamente corrigidas, para não comprometerem a harmonia do quadro, a imagem de sucesso e felicidade que se quer passar. 

O meu modelo de família é mais flexível: acolhe melhor as imperfeições, os tropeços, as sinuosidades dos caminhos. O que dá para resolver, a gente resolve. O que não dá, a gente vive. E não se preocupa em mascarar, fingir. Para quê?

Em casa não tenho super-filhos nem super-esposa. Não sou super-pai nem super-marido. Não somos super nada. Somos o que damos certo e o que fracassamos. O que se enquadra e o que foge para as margens. O que aprendemos, sofrendo ou não. O que vivemos, felizes ou não. 

Somos o que somos.

Comparações com outras famílias não nos ferem, porque, quase sempre, o que se compara com o que somos ou temos não representa, para nós, o essencial, o que realmente importa para uma vida plena e feliz, mas o excesso, o desnecessário. Nossa opção foi pelo simples, mas com direito a algumas gracinhas de vez em quando.

Flávio Marcus da Silva

A teus pés


"Tenho escrito longamente sobre este assunto
Aizita traz o chá
Bebericamos na varanda
Nenhum descontrole na tarde
Intervalo para as folhas caindo da árvore em frente
que nos entra pela janela
Não precisamos nos dizer nada
O parapeito vaza outra indicação
seca do presente
Ouvimos:
outra indicação seca do presente
Aizita vai ver na folhinha
pendurada no prego da cozinha
Acaba o chá
Acaba a colher de chá
Longamente
Eu também, bem, tenho escrito"

Ana Cristina Cesar (1952-1983). A teus pés. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 71

Programa de leituras



"– Você já leu Boécio com atenção?
– Quem? Céus, não li, não. Eu sequer leio jornais.
– Então você deve começar imediatamente um programa de leituras para poder entender as crises de nossa época – disse Ignatius solenemente. – Comece com os romanos tardios, inclusive Boécio, naturalmente. Depois você deve mergulhar extensivamente no medieval primitivo. A Renascença e o Iluminismo você pode pular. É principalmente propaganda perigosa. Agora, pensando bem, é melhor pular também os românticos e os vitorianos. Para o período contemporâneo, você deve estudar uma seleção de histórias em quadrinhos.
– Você é fantástico!
– Eu recomendo especialmente a do Batman, pois ele transcende a tenebrosa sociedade na qual se encontra inserido. Sua moral também é bastante rígida. Tenho grande respeito pelo Batman."

John Kennedy Toole (1937-1969). Uma confraria de tolos. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012, p. 285

Cantaremos o medo


"Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas."

Carlos Drummond de Andrade. Antologia Poética. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p. 108-9

Morte


"Durante o dia constrói
Seu muro de girassóis.
(Sei que pretende disfarce
E fantasia).
Durante a noite,
Fria de águas
Molhada de rosas negras
Me espia.
Que queres, morte,
Vestida de flor e fonte?

– Olhar a vida."

Hilda Hilst (1930-2004). Poesia. São Paulo: Quíron, 1980, p. 20

Agora


"Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore.
E degustando o êxito do Agora
A cada instante me vejo renascendo"

Hilda Hilst (1930-2004). Poesia. São Paulo: Quíron, 1980, p. 73

Contempla o teu viver que corre


"Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
'Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas'.
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
Morre o amor de um poeta.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto."

Hilda Hilst (1930-2004). Poesia. São Paulo: Quíron, 1980, p. 121

Ser terra


"Ser terra
E cantar livremente
O que é finitude
E o que perdura.

Unir numa só fonte
O que souber ser vale
Sendo altura."

Hilda Hilst (1930-2004). Poesia. São Paulo: Quíron, 1980, p. 166

Beleza tanta beleza


"Quero brincar meus amigos
De ver beleza nas coisas.
Beleza no desatino
No teu amor descuidado
Beleza tanta beleza
Na pobreza.
Quero brincar meus amigos

De ver beleza na moça
Que por amor não se dá.
Nem por nada. E se reserva
Ao homem que Deus dará.

Quero brincar meus amigos
De ver beleza na morte.
Mais que na morte, na vida.
Tão doce morrer em vida
Tão triste viver em vão.

Vamos brincar meus amigos
E de mãos dadas cantar
Minha feliz invenção:
Beleza tanta beleza
Em tudo que se não vê
Beleza."

Hilda Hilst (1930-2004). Poesia. São Paulo: Quíron, 1980, p. 267

Amar e destruir



"Em ti, terra, descansei a boca, a mesma que aos
outros deu de si o sopro da palavra e seu poder de 
amar e destruir."

Hilda Hilst (1930-2004). Poesia. São Paulo: Quíron, 1980, p. 142

Noite profunda



"Essa tentativa de viver mais intensamente levou-os a tentar pesar o que era e o que não era importante. (...) Parece que queriam descobrir o que era essencial para só viver dele. Mas de nada adiantava o vago esforço quase constrangido quefaziam: a própria trama de vida lhes escapava diariamente. E só olhando para o dia passado é que tinham a impressão de ter – de algum modo e por assim dizer à revelia deles – a impressão de ter vivido. Mas então era de noite, eles calçavam os chinelos e era noite profunda."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 696

A luta comum me acende o sangue


"Na leiteria a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São 
quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.
...
Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.

Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança."

Ferreira Gullar (1930-). Os melhores poemas de Ferreira Gullar. São Paulo: Global Ed., 1983, p. 65-6

Os sofrimentos do jovem Werther



"...são exatamente essas as pessoas mais felizes. Essas mesmas que, como as crianças, vivem o dia-a-dia sem pensar no futuro, arrastam suas bonecas por aí, vestem-nas, despem-nas, e volteiam cheias de respeito diante da gaveta onde mamãe chaveia os bombons, e quando logram êxito, enfim, fazendo com que ela os dê, devoram-nos estufando a boca e gritando: Mais!... Sim, estas é que são criaturas felizes! A coisa também vai bem para aqueles que dão um título imponente para seus trabalhos vagabundos, ou até para os seus sofrimentos, e os descrevem como obras gigantescas feitas em prol da salvação e da prosperidade do gênero humano... Feliz daquele que consegue proceder assim!"

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Os sofrimentos do jovem Werther (1774). Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 24-5

sábado, 17 de agosto de 2013

The lonely hunter


"She loved life, but at times felt compelled to withdraw from it. She loved people, yet felt that she sometimes repelled them. There were times when she felt she could draw no nourishment from any human relationship, that she was inexorably set apart─as though she were locked inside a very small room in which there was no light. She was sure that something marvelous was going on just outside her door, but after a few vain attempts to get out, she decided that it was safer and warmer within. Locked in her inner room, she would not have to risk being an object of ridicule, sympathy, or even worse, indifference."

Virginia Spencer Carr. The Lonely Hunter: a Biography of Carson McCullers

No descomeço era o verbo


"No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: 'Eu escuto a cor dos passarinhos'.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio."

Manoel de Barros. O Livro das Ignorãças. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 15

estado de árvore


"Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores."

Manoel de Barros. O Livro das Ignorãças. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 17

O que nos importa


"Não foi nada demais, claro, o que aconteceu:
apenas um homem, igual aos outros, que morreu

Que nos importa agora se quando menino
o seu grande sonho foi tocar violino?

Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?

Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?

Que nos importa agora se algum dia ele quis
conhecer Nova York, Londres ou Paris?

Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?

Agora está completo, já nada lhe falta:
nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda"

Ferreira Gullar. Seleção de textos, notas, estudos biográficos... São Paulo: Abril Educação, 1981. p. 49-50

Neste divã


"Neste divã recostado
à tarde
num canto do sistema solar
em Buenos Aires
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelão da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro, mistura
de nervos e ossos
vivendo
à temperatura de 36 graus e meio
lembrando plantas verdes
que já morreram"

Ferreira Gullar. Seleção de textos, notas, estudos biográficos... São Paulo: Abril Educação, 1981. p. 71-72

As antíteses congraçam


"Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.
Sou formado em desencontros.
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).
(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso
porque não encontrava um título para os seus poemas.
Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que
apareceu 'Flores do mal'. A beleza e a dor. Essa antítese o
acalmou.)

As antíteses congraçam."

Manoel de Barros. Livro sobre nada. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 49

Senhor, eu tenho orgulho do imprestável


"Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo – elas
podem um dia milagrar de flores.

(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)

Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas.

(Eu sou beato em violetas.)

Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam
a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

(O abandono me protege.)"

Manoel de Barros. Livro sobre nada. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 57

É preciso desformar o mundo


"Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um
formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar - como em Chagall.

Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por
aí a desformar.

Até já inventei mulher de 7 peitos para fazer vaginação
comigo."

Manoel de Barros. Livro sobre nada. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 75

doença de grandezas


"Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho."

Manoel de Barros. Livro sobre nada. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 61

Uma confraria de tolos


"Mercadores e impostores ganharam o controle da Europa, chamando de 'Iluminismo' a seu insidioso evangelho. O dia do gafanhoto havia chegado, mas das cinzas da humanidade não se elevou nenhuma Fênix. O humilde e piedoso Pedro, o Camponês, foi à cidade vender seus filhos aos senhores da Nova Ordem, para objetivos que podemos qualificar de questionáveis, na melhor hipótese. Ampliou-se o movimento giratório; rompeu-se a Grande Cadeia do Ser, como uma série de clipes de papel montados em fileira por um idiota babão; a morte, a destruição, a anarquia, o progresso, a ambição e o autoaperfeiçoamento seriam o novo destino de Pedro. E este seria um destino cruel: agora se defrontava com a perversão de ser obrigado a IR TRABALHAR."

John Kennedy Toole (1937-1969). Uma confraria de tolos. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012. p. 42

Sou um sujeito remoto


"Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam."

Manoel de Barros. Livro sobre nada. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 85

Eu fiz o nada aparecer


"O que não sei fazer desmancho em frases.

Eu fiz o nada aparecer.

(Represente que o homem é um poço escuro.
Aqui de cima não se vê nada.
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada.)

Perder o nada é um empobrecimento."

Manoel de Barros. Livro sobre nada. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 63

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Charles IX, roi de France



"En sa rêverie avec un doigt contre la tempe et sa santé altérée par les remords dans ce Louvre plus triste encore où chacun s'organise déjà en prévision de sa mort, Charly 9 est assis, seul, au bout de la grande salle du trône.

Chemise trempée de sang et face contrariée, il ne semble plus rien attendre du reste de sa courte existence. Amaigri par l'hémorragie cutanée qui le vide, sa continuelle mélancolie le rend insensible à tout. Las, cassé, bonnet de velours pendant sur oreille avec une plume mise à la bizarre, il vit de ses instants où l´âme anéantie paraît être avertie d'un sinistre avenir."

Jean Teulé. Charly 9 (roman). Paris: Éditions Julliard, 2011, p. 183

Romance histórico sobre o curto reinado do rei francês Carlos IX (1550-1574)

domingo, 4 de agosto de 2013

L'ennemi


"Le 24 mars 1999, les passagers qui attendaient le départ du vol pour Barcelone assistèrent à un spectacle sans nom. Comme l'avion en était à sa troisième heure de retard inexpliqué, l'un des voyageurs quitta son siège et vint se fracasser le crâne à plusieurs reprises sur l'un des murs du hall. Il était animé d'une violence si extraordinaire que personne n'osa s'interposer. Il continua jusqu'à ce que mort s'ensuivît.

Les témoins de ce suicide inqualifiable précisèrent un détail. Chaque fois que l'homme venait se taper la tête contre la paroi, il ponctuait son geste d'un hurlement. Et ce qu'il criait, c'était:

- Libre! Libre! Libre!"

Amélie Nothomb. Cosmétique de l'ennemi. Paris: Albin Michel, 2001, p. 123

L'auteur parle

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Demian (II)


"Muitas vezes havia brincado com imagens do futuro e havia entressonhado os destinos que me estavam reservados, como poeta talvez ou talvez como profeta, como pintor, ou de que modo fosse. E tudo isso era um equívoco. Eu não existia para fazer versos, para rezar ou para pintar. Nem eu nem nenhum homem existíamos para isso. Tudo era secundário. O verdadeiro ofício de cada um era apenas chegar até si mesmo. Depois, podia acabar poeta ou louco, profeta ou criminoso. Isso já não era coisa sua, e além de tudo, em última instância, carecia de todo alcance. Sua missão era encontrar seu próprio destino, e não qualquer um, e vivê-lo interiormente até o fim. Tudo o mais era ficar a meio caminho, era retroceder para refugiar-se no ideal da coletividade, era adaptação e medo da própria individualidade interior. Essa nova imagem ergueu-se claramente diante de mim, terrível e sagrada, mil vezes vislumbrada, talvez já expressa alguma vez, mas somente agora vivida. Eu era um impulso da natureza, um impulso em direção ao incerto, talvez do novo, talvez do nada, e minha função era apenas deixar que esse impulso atuasse, nascido das profundezas primordiais, sentir em mim sua vontade e fazê-lo meu por completo. Esta, e somente esta, era a minha função.

Eu havia provado a fundo a solidão. Mas agora pressentia uma solidão ainda mais profunda, e pressentia-a inevitável." (p. 148)
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"Quinze dias depois matriculei-me na Universidade de H. Tudo nela decepcionou-me. O curso de História da Filosofia, que comecei a frequentar, pareceu-me tão vulgar e trivial como as atividades dos jovens estudantes. Tudo seguia padrões rígidos, todos faziam as mesmas coisas, e a calorosa alegria das faces juvenis tinha uma expressão lamentavelmente vazia e impessoal. Quanto a mim, desfrutava minha liberdade; vivia tranquila e ordenadamente nas proximidades das velhas muralhas da cidade e tinha sobre a mesa um par de volumes de Nietzsche. Vivia com o filósofo, sentia a solidão de sua alma, vislumbrava o destino que o impulsionava sem tréguas, sofria com ele e me sentia feliz sabendo de alguém que havia seguido inexoravelmente seu caminho.

Uma noite, saí a passear pelas ruas da cidade, sob a rude carícia do ar outonal, e ouvi os cantos que os grupos de estudantes entoavam nas cervejarias. Pelas janelas abertas saía em nuvens a fumaça do tabaco e, em denso retumbar, o canto sonoro e rítmico, mas sem asas, inanimado e uniforme.

Parado numa esquina, ouvia ressoar numa das cervejarias próximas aquela alegria juvenil religiosamente exercitada todas as noites. Em toda a parte dominava a comunidade, o instinto gregário, a repulsa ao destino e o refúgio no recolhimento do rebanho." (p. 154-5)
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"Saboreando minha alegria, empreendi o longo caminho de volta à minha casa na fria noite outonal. Aqui e ali tropecei ainda com estudantes que se retiravam para a casa fazendo algazarra e cambaleando. Não raro tinha comparado sua maneira singular de divertir-se com a minha vida solitária, certas vezes com alguma inveja e em outras com desprezo. Mas nunca havia sentido como hoje, com plena serenidade e secreta energia, quão pouco me importava aquilo e quão distante e perdido era para mim aquele mundo. Lembrei-me dos honrados burgueses de minha cidade natal, velhos e dignos senhores, que conservavam a recordação de seu tempo de estudantes como a memória de um paraíso bem-aventurado e consagravam à perdida 'liberdade' daqueles anos um culto como o que os poetas e outros românticos dedicam à sua infância. Em toda parte era o mesmo! Todos os homens buscavam a 'liberdade' e a 'felicidade' num ponto qualquer do passado, só de medo de ver erguer-se diante deles a visão da responsabilidade própria e da própria trajetória. Durante alguns anos farreavam e bebiam, para logo submeterem-se ao rebanho e se converterem em senhores graves ao serviço do Estado." (p. 158-9)

Hermann Hesse (1877-1962). Demian (1919). 21ª ed. Rio de Janeiro: Record

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Demian


“Às vezes contávamos um para o outro os nossos sonhos. Pistórius sabia interpretá-los. Recordo agora um deles, para o qual encontrou uma explicação singular. Sonhei que estava voando, mas não por faculdade própria, e sim lançado através dos ares por impulso violento que não podia dominar. A sensação desse vôo, deliciosa a princípio, não tardou em tranformar-se em medo ao ver-me disparado a alturas vertiginosas. Aí descobria satisfeito que podia regular a ascensão e a descida, conforme retivesse ou deixasse escapar o hálito.

Sobre isso disse Pistórius: ‘O impulso que te faz voar é o nosso grande patrimônio humano, comum a todos. É o sentimento de relação com as raízes de todas as forças. Mas tememos abandonar-nos a ele. É tão perigoso! Por isso quase todos renunciam de bom grado a voar e preferem caminhar, pela escala burguesa, apoiados nos preceitos legais. Tu não. Tu continuas voando corajosamente. E súbito descobres algo maravilhoso: percebes que pouco a pouco te vais assenhoreando do impulso e que junto com a magna força geral que te arrasta há outra força minúscula e sutil que te é própria: um órgão e um timão. Sem ela vaguearias ao acaso pelos ares, como acontece, por exemplo, com os loucos. Eles têm vislumbres mais profundos que os da escala burguesa; mas não possuem a chave, carecem de um timão que lhes permita marcar o rumo, e flutuam à deriva nos espaços. Mas tu não, Sinclair; tu consegues por meio de um órgão novo, de um regulador respiratório. E agora podes ver quão pouco pessoal é tua alma em seus estratos mais profundos. Tal regulador não é, nem de leve, uma invenção tua! É o órgão de equilíbrio dos peixes, a bexiga natatória. Ainda existem hoje algumas espécies de peixes, estranhas e conservadoras, nas quais a bexiga natatória é ao mesmo tempo uma espécie de pulmão que, em determinadas circunstâncias, serve efetivamente para respirar. Exatamente da mesma forma como utilizas no sonho os pulmões para regular teu vôo’.” (p. 127-8)
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“- Afirmaste certa vez – disse-me um dia – que a música te agradava por ser totalmente destituída de moralidade. Está certo. Mas o que importa é que também tu não sejas moralista. Não há por que te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer. Com isso só conseguimos perder-nos, entrar na escala burguesa e fossilizar-nos. Meu caro Sinclair, nosso deus se chama Abraxas e é deus e demônio a um só tempo; sintetiza em si o mundo luminoso e o obscuro. Abraxas nada tem a opor a qualquer de teus pensamentos e a qualquer de teus sonhos. Não te esqueças disso.” (p. 132)
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“Também não quero dizer que devas fazer simplesmente tudo aquilo que te ocorra. Contudo, não deves tentar afastar essas ocorrências, que muitas vezes trazem consigo um sentido perfeito, nem afugentá-las com pretextos moralizantes, pois é quando se tornam verdadeiramente nocivas. Em lugar de crucificar-te a ti mesmo ou a outrem, o melhor é bebermos todos o mesmo cálice, elevando solenemente nosso espírito e pensando no mistério do sacrifício. Também, sem necessidade desses atos, podemos tratar com amor e tolerância a nossos instintos, que então nos mostram seu sentido... Quando te ocorrer de novo algo verdadeiramente insensato e pecaminoso, quando sentires a tentação de matar alguém ou cometer alguma obscenidade monstruosa, pensa que é Abraxas quem devaneia assim em teu interior! O homem a quem quiseres matar nunca será este ou aquele; esses não passam de disfarces. Quando odiamos um homem, odiamos em sua imagem algo que trazemos em nós mesmos. Também o que não está em nós mesmos nos deixa indiferentes.” (p. 134-5)

Hermann Hesse. Demian (1919). 21ª ed. Rio de Janeiro: Record