sábado, 31 de agosto de 2013

A luta comum me acende o sangue


"Na leiteria a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São 
quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.
...
Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.

Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança."

Ferreira Gullar (1930-). Os melhores poemas de Ferreira Gullar. São Paulo: Global Ed., 1983, p. 65-6

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