quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Demian


“Às vezes contávamos um para o outro os nossos sonhos. Pistórius sabia interpretá-los. Recordo agora um deles, para o qual encontrou uma explicação singular. Sonhei que estava voando, mas não por faculdade própria, e sim lançado através dos ares por impulso violento que não podia dominar. A sensação desse vôo, deliciosa a princípio, não tardou em tranformar-se em medo ao ver-me disparado a alturas vertiginosas. Aí descobria satisfeito que podia regular a ascensão e a descida, conforme retivesse ou deixasse escapar o hálito.

Sobre isso disse Pistórius: ‘O impulso que te faz voar é o nosso grande patrimônio humano, comum a todos. É o sentimento de relação com as raízes de todas as forças. Mas tememos abandonar-nos a ele. É tão perigoso! Por isso quase todos renunciam de bom grado a voar e preferem caminhar, pela escala burguesa, apoiados nos preceitos legais. Tu não. Tu continuas voando corajosamente. E súbito descobres algo maravilhoso: percebes que pouco a pouco te vais assenhoreando do impulso e que junto com a magna força geral que te arrasta há outra força minúscula e sutil que te é própria: um órgão e um timão. Sem ela vaguearias ao acaso pelos ares, como acontece, por exemplo, com os loucos. Eles têm vislumbres mais profundos que os da escala burguesa; mas não possuem a chave, carecem de um timão que lhes permita marcar o rumo, e flutuam à deriva nos espaços. Mas tu não, Sinclair; tu consegues por meio de um órgão novo, de um regulador respiratório. E agora podes ver quão pouco pessoal é tua alma em seus estratos mais profundos. Tal regulador não é, nem de leve, uma invenção tua! É o órgão de equilíbrio dos peixes, a bexiga natatória. Ainda existem hoje algumas espécies de peixes, estranhas e conservadoras, nas quais a bexiga natatória é ao mesmo tempo uma espécie de pulmão que, em determinadas circunstâncias, serve efetivamente para respirar. Exatamente da mesma forma como utilizas no sonho os pulmões para regular teu vôo’.” (p. 127-8)
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“- Afirmaste certa vez – disse-me um dia – que a música te agradava por ser totalmente destituída de moralidade. Está certo. Mas o que importa é que também tu não sejas moralista. Não há por que te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer. Com isso só conseguimos perder-nos, entrar na escala burguesa e fossilizar-nos. Meu caro Sinclair, nosso deus se chama Abraxas e é deus e demônio a um só tempo; sintetiza em si o mundo luminoso e o obscuro. Abraxas nada tem a opor a qualquer de teus pensamentos e a qualquer de teus sonhos. Não te esqueças disso.” (p. 132)
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“Também não quero dizer que devas fazer simplesmente tudo aquilo que te ocorra. Contudo, não deves tentar afastar essas ocorrências, que muitas vezes trazem consigo um sentido perfeito, nem afugentá-las com pretextos moralizantes, pois é quando se tornam verdadeiramente nocivas. Em lugar de crucificar-te a ti mesmo ou a outrem, o melhor é bebermos todos o mesmo cálice, elevando solenemente nosso espírito e pensando no mistério do sacrifício. Também, sem necessidade desses atos, podemos tratar com amor e tolerância a nossos instintos, que então nos mostram seu sentido... Quando te ocorrer de novo algo verdadeiramente insensato e pecaminoso, quando sentires a tentação de matar alguém ou cometer alguma obscenidade monstruosa, pensa que é Abraxas quem devaneia assim em teu interior! O homem a quem quiseres matar nunca será este ou aquele; esses não passam de disfarces. Quando odiamos um homem, odiamos em sua imagem algo que trazemos em nós mesmos. Também o que não está em nós mesmos nos deixa indiferentes.” (p. 134-5)

Hermann Hesse. Demian (1919). 21ª ed. Rio de Janeiro: Record

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