sexta-feira, 28 de junho de 2013

A morte não existe para os mortos


"A morte não 
existe para os mortos.

Os mortos não
têm medo da morte desabrochada.

Os mortos 
conquistam a vida, não
a lendária, mas
a propriamente dita
a que perdemos
ao nascer."
...

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Poesia completa (volume único). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002. p. 741

quero o não querer


"Nada mais insuportável do que essa viagem de trem.
Se me atirassem no vagão de gado a caminho do matadouro
talvez eu me soubesse menos infeliz.
Seria o fim, e há no fim uma gota de delícia,
um himalaia de silêncio para sempre.
Não quero ouvir falar de mim.
Não quero eu mesmo estar em mim.
Quero ser o barulho das ferragens me abafando,
quero evaporar-me na fumaça,
quero o não querer, quero o não-quero."
...

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Poesia completa (volume único). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002. p. 1124

Natureza


"O que é Natureza? Pergunta difícil de se responder porque nós também fazemos parte dela e sem distância suficiente para encará-la: em mim ela brota de meu âmago qual semente que rompe a terra. Natureza - como explicar o seu significado único e total? como entender sua simplicidade enigmática? Nem me lembro como ou quando me ensinaram ou li essa palavra - mas não a explicaram. E no entanto entendi. Quem não sabe o que é jamais chegará a saber. Há coisas que não se aprendem."

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas: 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 625

Aura


"Você lê esse anúncio: uma oferta assim não é feita todos os dias. Lê e relê o anúncio. Parece dirigido diretamente a você, a ninguém mais. Distraído, deixa cair a cinza do cigarro dentro da xícara de chá que estava bebendo neste café sujo e barato. Torna a ler. Solicita-se historiador jovem. Organizado. Escrupuloso. Conhecedor da língua francesa. Conhecimento perfeito, coloquial. Capaz de desempenhar funções de secretário. Juventude, conhecimento do francês, de preferência que tenha vivido na França por algum tempo. Três mil pesos mensais, comida e aposento cômodo, batido pelo sol, estúdio bem instalado. Só falta o seu nome. Falta apenas que as letras do anúncio informem: Felipe Montero. Solicita-se Felipe Montero, antigo bolsista na Sorbonne, historiador cheio de dados inúteis, acostumado a exumar papéis amarelados pelo tempo, professor auxiliar em escolas particulares, novecentos pesos mensais. Mas se você lesse isso, ficaria desconfiado, tomaria tal coisa como brincadeira."

Trecho inicial do conto "Aura", de Carlos Fuentes (1928-2012), publicado pela L&PM Pocket (tradução de Olga Savary)

LEMINSKI


"Repousa sob a laje
o que viveu oculto.
Poupem-no do ultraje
do tumulto."
....................................................................

"Nada tenho.
Nada me pode ser tirado.
Eu sou o ex-estranho,
o que veio sem ser chamado
e, gato, se foi
sem fazer nenhum ruído."
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"pedaço de prazer
perdido
num canto do quarto escuro
inferno paraíso
vivo ou morto
te procuro"
....................................................................

"de colchão em colchão
chego à conclusão
meu lar é no chão"
....................................................................

"Faça os gestos certos,
o destino vai ser teu aliado,
ouço uma voz dizendo
do fundo mais fundo do passado.
Hoje, não faço nada direito,
que é preciso muito mais peito
pra fazer tudo de qualquer jeito.

Ai do acaso,
se não ficar do meu lado."
....................................................................

"um dia sobre nós também
vai cair o esquecimento
como a chuva no telhado
e sermos esquecidos
será quase a felicidade"
....................................................................

"podia passar
a vida inteira assim
olhando a lua
a boca cheia de luz
e na cabeça nem sombra
da palavra glória"

Paulo Leminski (1944-1989). La vie en close. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Álbum de fotografias


"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). In: Sentimento do mundo (1940). Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 57

Morrer


"Morrer, Senhor, de súbito, não quero!
Morrer como quem parte lentamente
Vendo o mundo perder-se pouco a pouco
E com o mundo as imagens da memória.

Morrer sabendo próxima e implacável
A hora de deixar o doce efêmero.
Morrer o olhar voltado para a altura
Para a Face de Deus, ardente e pura.

Morrer como quem vai se despedindo
A fixar as paisagens mais antigas
E os seres mais longínquos, já partidos.

Morrer levando a vida já vivida!
Morrer maduro, e não qual fruto verde
Por violência dos galhos arrancado."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. p. 122

tudo é efêmero


"Nada mais tenho de todas as minhas riquezas.
Mas o que ainda trago comigo não tem preço.
Possuo o conhecimento de que tudo é efêmero
Mas que o amor, efêmero também, ilumina e enfrenta a
[morte.

Possuo o conhecimento de que as honrarias e o poder
Não são mais que cinza e menos que a nuvem
Que mancha o leve céu matinal.
Possuo a experiência do sofrimento e da glória
E sei que as feridas mais fundas de hoje
São as pequenas cicatrizes de amanhã.
Sei que a noite se sucede ao dia
E que o dia é ilusório e a noite verdadeira.
Sei que os homens podem ser como chacais
Mas que há um poço de doçura
Em algumas almas e que isso exalta a vida."
...

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. p. 135

Desejo de passar em silêncio


"Desejo de não ser nem herói e nem poeta
Desejo de não ser senão feliz e calmo.
Desejo das volúpias castas e sem sombra
Dos fins de jantar nas casas burguesas.

Desejo manso das moringas de água fresca
Das flores eternas nos vasos verdes.
Desejo dos filhos crescendo vivos e surpreendentes
Desejo de vestidos de linho azul da esposa amada.

Oh! não as tentaculares investidas para o alto
E o tédio das cidades sacrificadas.
Desejo de integração no cotidiano.

Desejo de passar em silêncio, sem brilho
E desaparecer em Deus - com pouco sofrimento
E com a ternura dos que a vida não maltratou."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. p. 45

Foto: da esquerda para a direita, Murilo Mendes (1901-1975), Anibal Machado (1894-1964), Jayme Ovalle (1894-1955), Manuel Bandeira (1886-1968) e Augusto Frederico Schmidt (1906-1965)

Beleza


"Quando o tempo desfaz as formas perecíveis,
Para onde vai, qual o destino da Beleza,
Que é a expressão da própria eternidade?

Na hora da libertação das formas,
Qual o destino da Beleza, que as formas puras realizaram?

Qual o destino do que é eterno,
Mas está configurado no efêmero,
No momento inexorável da purificação?

A Beleza não morre.
Não importa que o seu caminho
Seja visitado pela destruição, que é a própria lei
E pelas sombras.

A Beleza não morre.
Deus recolhe as flores que o tempo desfolha;
Deus recolhe a música das fisionomias que o tempo
[escurece e silencia;
Deus recolhe o que venceu as substâncias frágeis
E realizou o milagre do Espírito Impassível
No movimento e na matéria.
Deus recolhe a Beleza como o corpo absorve a sua sombra
Na hora em que a luz realiza o seu destino de unidade e
[pureza."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. p. 60

coisas perdidas


"As colegiais, as raparigas em flor,
Estão escondidas com os seios intatos no fundo da terra,
No fundo da terra onde dormem também
Os grandes do mundo, os bispos vestidos com as sérias 
[roupagens,
E as freiras, e as velhas, e os pobres anônimos
Que vão para o sono sem têrmo
Com os corpos desnudos envoltos em pobres lençóis.

O fundo da terra e o fundo do mar
São tão misteriosos, tão cheios de estranhos segredos,
De coisas perdidas..."
...

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. p. 102

Aprender a ver


"Aprender a ver — habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados. Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não reagir imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem obstáculos, que isolam. (...) Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade descansa na incapacidade de opor resistência a um estímulo — tem que se reagir, seguem-se todos os impulsos."

Friedrich Nietzsche. Crepúsculo dos Ídolos.

Não morrer


"Não morrer - mas ser colhido pela morte.
Ser colhido, porque maduro, para o silêncio.
Não morrer - mas pender para a morte,
Como as frutas que, tocadas pelo tempo,
Se inclinam para o úmido chão.

Não morrer - mas estar com a morte ampla e serena
Nos olhos, no coração e no corpo e na alma.
Estar para o Fim, maduro como as amoras de vez,
Como as amoras da montanha.

Sentir em si a harmonia dos últimos passos
E o consolo dos olhares que não querem mais ver.
Ser levado pelas mãos da morte,
E estar com a morte em si, como esperança, como única
[esperança."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. p. 61

Foto: túmulo no Cemitério do Père Lachaise, em Paris

Noite


"Acorda, meu amor, a hora é de vida.
Vem assistir ao espetáculo da noite.
Vem assistir à silenciosa floração.
Vem contemplar o invisível crescimento dos frutos.

Vem, acorda, a hora é plena e feliz,
Amanhã poderás dormir tranquila e ninguém te despertará.
Amanhã poderás dormir; a noite de dormir
Não é esta noite, mas outra, bem diferente

Outra noite mais fria e tão mais longa,
Sem cantos de pássaros, sem esta lua
Enchendo as estradas e a várzea de claras flores,
Sem este cheiro de magnólias e jasmins."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. p. 110

Segredo


"Tristeza de ver a tarde cair
como cai uma folha.
(No Brasil não há outono
mas as folhas caem.)

Tristeza de comprar um beijo
como quem compra jornal.
Os que amam sem amor
não terão o reino dos céus.

Tristeza de guardar um segredo
que todos sabem
e não contar a ninguém
(que esta vida não presta)."

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Poesia completa (volume único). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002. p. 31

sábado, 8 de junho de 2013

A arrogância segundo os medíocres


“Adorei o seu sapato”, disse uma amiga para mim certa vez.

“Legal, né? Eu comprei em uma feira de artesanato na Colômbia, achei super legal também”, eu respondi, de fato empolgada porque eu também adorava o sapato. Foi o suficiente para causar reticências  quase visíveis nela e no namorado e, se não fosse chato demais, eles teriam dado uma risadinha e rolariam os olhos um para o outro, como quem diz “que metida”. Mas para meia-entendedora que sou, o “ah…” que ela respondeu bastou.

Incrível é que posso afirmar com toda convicção que, se tivesse comprado aquele sapato em um camelô da 25 de março, eu responderia com a mesma empolgação “Legal, né? Achei lá na 25!”. Só que aí sim eu teria uma reação positiva, porque comprar na 25 “pode”.

Experiências como essa fazem com que eu mantenha minhas viagens em 13 países, minha fluência em francês e meus conhecimentos sobre temas do meu interesse (linguística, mitologia, gastronomia etc) praticamente para mim mesma e, em doses homeopáticas, comente entre meu restrito círculo familiar e de amigos (aquele que a gente conta nos dedos das mãos).

Essa censura intelectual me deixa irritada. Isso porque a mediocridade faz com que muitos torçam o nariz para tudo aquilo que não conhecem, mas que socialmente é considerado algo de um nível de cultura e poder aquisitivo superior. E assim você vira um arrogante. Te repudiam pelo simples fato de você mencionar algo que tem uma tarja invisível de “coisa de gente fresca”.

Não importa que ele pague R$ 30 mil em um carro zero, enquanto você dirige um carro de mais de 15 anos e viaja durante um mês a cada dois anos para o exterior gastando R$ 5 mil (dinheiro que você, que não quer um carro zero, juntou com o seu trabalho enquanto ele pagava parcelas de mil reais ao mês). Não importa que você conheça uma palavra em outra língua que expressa muito melhor o que você quer falar. Você não pode mencioná-la de jeito nenhum! Mas ele escreve errado o português, troca “c” por “ç”, “s” por “z” e tudo bem.

Não pode falar que não gosta de novela ou de Big Brother, senão você é chato. Não pode fazer referência a livro nenhum, ou falar que foi em um concerto de música clássica, ou você é esnobe. Não ouso sequer mencionar meus amigos estrangeiros, correndo o risco de apedrejamento.

Pagar R$200 em uma aula de francês não pode. Mas pagar mais em uma academia, sem problemas. Se eu como aspargos e queijo brie, sou “chique”. Mas se gasto os mesmos R$ 20 (que compra os dois ingredientes citados) em um lanche do Mc Donald’s, aí tudo bem. Se desembolso R$100 em uma roupa ou acessório que gosto muito, sou uma riquinha consumista. Mas gastar R$100 no salão de cabeleireiro do bairro pra ter alguém refazendo sua chapinha é considerado normal. Gastar de R$30 a R$50 em vinho (seco, ainda por cima) é um absurdo. Mas R$80 em um abadá, ou em cerveja ruim na balada, ou em uma festa open bar… Tranquilo!

Meu ponto é que as pessoas que mais exercem essa censura intelectual têm acesso às mesmas coisas que eu, mas escolhem outro estilo de vida. Que pode ser até mais caro do que o meu, mas que não tem a pecha de coisa de gente arrogante.

O dicionário Aulete define a palavra “arrogância” da seguinte forma:

1. Ação ou resultado de atribuir a si mesmo prerrogativa(s), direito(s), qualidade(s) etc.

2. Qualidade de arrogante, de quem se pretende superior ou melhor e o manifesta em atitudes de desprezo aos outros, de empáfia, de insolência etc.

3. Atitude, comportamento prepotente de quem se considera superior em relação aos outros; INSOLÊNCIA: “…e atirou-lhe com arrogância o troco sobre o balcão.” (José de Alencar, A viuvinha)

4. Ação desrespeitosa, que revela empáfia, insolência, desrespeito.

Pois bem. Ser arrogante é, então, atribuir-se qualidades que fazem com que você se ache superior aos outros. Mas a grande questão é que em nenhum momento coloco que meus interesses por línguas estrangeiras, viagens, design, gastronomia e cultura alternativa são mais relevantes do que outros. Ou pior: que me fazem alguém melhor que os outros. São os outros que se colocam abaixo de mim por não ter os mesmos interesses, taxar esses interesses de “coisa de grã-fino” (sim, ainda usam esse termo) e achar que vivem em um universo dos “pobres legais”, ainda que tenham o mesmo salário que eu. E o pior é que vivem, mesmo: no universo da pobreza de espírito.

Carmem Guerreiro, no blog AnsiaMente

Pequenas Criaturas


"O lar é um monstro que nunca tem as suas exigências saciadas, está sempre pedindo mais. À noite tenho que ir a festas e jantares com ele e os nossos amigos, onde me mostro alegre, e sou a que ri mais alto, a que fala com mais entusiasmo, mas quando chego em casa estou com vontade de vomitar e preciso tomar um tranquilizante para poder dormir."

Rubem Fonseca. Pequenas Criaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 162

terça-feira, 4 de junho de 2013

Destino


"Ele é agora gerente de uma loja de sapatos. Não porque escolheu, mas foi o que lhe restou. Perguntava-se sempre: onde está o meu erro? O erro em relação a seu destino, queria ele dizer. Não há grandes motivos a procurar no fato de alguém ser gerente numa loja de sapatos. Mas uma vez que ele mesmo se pergunta e estende sapatos como se não pertencesse a esse mundo - o motivo de indagação aparece. Por que realmente?"

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 354-5

A casa


"Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas. 
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida."

Sophia de Mello Breyner Andresen (poeta portuguesa, 1919-2004). A casa. In: Dual (1972)

Foto: a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, fotografada por Fernando Lemos em 1952

domingo, 2 de junho de 2013

O mundo sem mim


"Outro dia, fiquei pensando no mundo sem mim. Há o mundo continuando a fazer o que faz. E eu não estou lá. Muito estranho. Penso no caminhão do lixo passando e levando o lixo e eu não estou lá. Ou o jornal jogado no jardim e eu não estou lá para pegá-lo. Impossível. E, pior, algum tempo depois de estar morto, vou ser verdadeiramente descoberto. E todos aqueles que tinham medo de mim ou que me odiavam enquanto eu estava vivo vão subitamente me aceitar. Minhas palavras vão estar em todos os lugares. Vão se formar clubes e sociedades. Será nojento. Será feito um filme sobre a minha vida. Me farão muito mais corajoso e talentoso do que sou. Muito mais. Será suficiente para fazer os deuses vomitarem. A raça humana exagera tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância."

Charles Bukowski (1920-1994). O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio (livro publicado em 1998, com trechos do diário escrito por Bukowski entre agosto de 1991 e fevereiro de 1993).

Pirata


"Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo."

Sophia de Mello Breyner Andresen (poeta portuguesa, 1919-2004)

Para atravessar contigo o deserto do mundo


"Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento"

Sophia de Mello Breyner Andresen (poeta portuguesa, 1919-2004). Livro sexto (1962)