"Ouça o choro do recém-nascido no momento em que vem à luz - assista às agonias da morte no momento final - e então diga se o que começa e termina dessa forma pode estar destinado ao prazer.
É bem verdade que nós seres humanos fazemos tudo da forma mais rápida possível para nos afastarmos desses dois pontos, corremos o mais rápido possível para esquecer o choro do nascimento e transformá-lo na alegria de ter dado vida a um ser. E quando alguém morre nós imediatamente dizemos: em paz ele se foi, a morte é um sono, um sono tranquilo - algo que dizemos não pelo bem daquele que morreu, pois as nossas palavras em nada podem ajudá-lo, mas pelo nosso próprio bem, para que não percamos o entusiasmo pela vida, para alterarmos tudo com vistas a um aumento do entusiasmo pela vida durante o intervalo entre o choro do nascimento e o gemido da morte, entre o berro da mãe e a repetição do mesmo berro pelo filho, quando este vem a morrer.
Imagine um belo e esplêndido salão onde tudo é feito para gerar alegria e diversão - mas a entrada para esse lugar é uma escada asquerosa, enlameada, horrível, pela qual é impossível passar sem que se fique repulsivamente sujo, e o preço que se tem de pagar para entrar é a prostituição, e quando o dia amanhece a diversão termina e tudo acaba com você sendo chutado para o lado de fora novamente - mas ao longo de toda a noite tudo é feito para manter e inflamar a diversão e o prazer!
O que é a reflexão? É simplesmente refletir sobre estas duas perguntas: como foi que eu me meti nisso e como é que eu faço para sair dessa novamente, como é que isso termina? O que é a irreflexão? É conjuminar tudo de modo a afogar no esquecimento tudo o que diz respeito à entrada e à saída, é conjuminar tudo para reexplicar e atenuar a entrada e a saída, perdendo-se simplesmente no intervalo entre o grito do nascimento e a repetição desse grito quando aquele que nasce enfim se extingue nas agonias da morte."
Søren Kierkegaard (filósofo dinamarquês, 1813-1855). Citado por A. Alvarez. O Deus Selvagem: um estudo do suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 125
Imagem: A. Alvarez, autor de O Deus Selvagem
Imagem: A. Alvarez, autor de O Deus Selvagem
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