Passei semanas no sobrado da
Villa Road, sem sair, pintando dia e noite, destruindo e pintando outra vez,
tentando encontrar a imagem em seu instante de plenitude. Não sei quanta coisa
veio do acaso, quanta coisa veio dos estudos e esboços, esse difícil equilíbrio
entre o acaso e a intenção. O que sei é que trabalhei de maneira exasperada,
alucinada às vezes, às vezes rindo da minha própria desgraça. Formas mais ou
menos figurativas, decompondo o retrato da família, até chegar à roupa e aos
dejetos de Jano. Idéias e emoções que nos movem. Me livrei de um peso quando
terminei esse trabalho, mas não me considero um artista, Lavo. Só quis dar
algum sentido a minha vida. Tinha medo de morrer com os meus esboços, teria
sido uma vida esvaziada...
(...)
Pensei em reescrever minha vida
de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as
palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre... Sinto no corpo
o suor da agonia. Amigo... Esse teto baixo, paredes vazias, ausência de cor e
de céu... O sol e o céu do Rio e do Amazonas... nunca mais... Só essas paredes,
e esse cheiro insuportável... Agora a minha própria voz zunindo e sinto
fagulhas na cabeça, e a voz zunindo, fraca, dentro de mim... Não posso mais
falar. O que restou de tudo isso? Um amigo, distante, no outro lado do Brasil. Não
posso mais falar nem escrever. Amigo... sou menos que uma voz...
Milton Hatoum, Cinzas do Norte
(2005). São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
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